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sexta-feira, dezembro 16, 2005

D. QUIXOTE: alter-ego de António José da Silva?



(Conferência «O QUIXOTE E O TEATRO», proferida na Sala de Actos da ESAP

15 de Dezembro de 2005

António José da Silva «o Judeu» (1705-1739)
Filho de gente de ascendência judia (o pai era advogado e chamava-se João Mendes da Silva e a mãe Lourença Coutinho), o moço António José, nascido no Rio de Janeiro em 8 de Maio de 1705, teve de acompanhar os pais para Lisboa, enviados pela Inquisição, aí sendo encarcerados em 1712.
António José estudou em Lisboa e formou-se em Direito em Coimbra, com apenas 24 anos.
Os outros filhos do casal, Baltasar e André, também foram, como os pais, encarcerados e torturados nas masmorras inquisitoriais, vendo-se espoliados de todos os seus bens.
Ainda estudante (em 1726), António José é preso pela primeira vez, acusado de levar uma vida pouco confinante com as regras da moral embora já então ele se esforçasse por parecer um católico praticante, e é condenado com «pena de cárcere e hábito penitencial perpétuo», obrigado a «ser instruído nos mistérios da fé», mas logrando sair da cadeia após o auto-de-fé realizado em 13 de Outubro desse mesmo ano. Três anos mais tarde (1729), sua mãe é novamente presa.
Dedica-se às letras e à advocacia, mas em 5 de Outubro de 1737 volta a ser detido juntamente com a mulher: é torturado e sentenciado à fogueira, tendo morrido num auto-de-fé em 18 de Novembro de 1739, com apenas 34 anos de idade. Deixa viúva Leonor Maria de Carvalho, a prima com quem casara em 1734.
Curiosamente, fora queimado por ser «judeu» e não por ser o autor das operetas que conheciam estrondosos sucessos no Teatro do Bairro Alto, mas de que a Inquisição ignorava a verdadeira autoria, como defende um dos seus mais atentos estudiosos[1].
A sua obra, magistral pela concepção que não pelo volume, inicia-se logo em 1733 com A Vida do Grande D. Quixote de la Mancha e do Gordo Sancho Pança. No ano seguinte escreve Esopaida. Seguem-se então obras de inspiração greco-latina como Os Encantos de Medeia (1735), Anfitrião ou Júpiter e Alcmena e Labirinto de Creta, ambos de 1736. A sátira é uma constante na imaginação criadora do grande dramaturgo e a sociedade em que vive fornece-lhe temáticas de sobra. Não espanta, pois, que no ano de 1737 nos surja com Guerras do Alecrim e Manjerona, As Variedades de Proteu e o Precipício de Faetonte, esta já em 1738, que foi a sua última produção.
A sua obra foi postumamente reunida pelo seu amigo e editor Francisco Luís Ameno, sob o título Teatro Cómico Português.
Apenas o Labirinto de Creta, As Variedades de Proteo, e As Guerras do Alecrim e Mangerona foram publicadas em vida, nos prelos de António Isidoro da Fonseca, entre 1736 e 1737.
É-lhe ainda atribuída a autoria de Obras do Diabinho da Mão Furada.
Todas as óperas joco-sérias, como ele as classificou, foram representadas no alfacinha Teatro do Bairro Alto, deliciando as gentes que de vários estratos sociais ali acorriam para se verem ao espelho e deliciarem-se com as grotescas caricaturas das suas próprias taras e manias[2].
Tentando inovar, recupera a prosa dramática desaparecida desde Jorge Ferreira de Vasconcelos, rejeita os modelos estéticos clássicos, ridiculariza a sociedade do seu tempo mas também os padrões clássicos da estética do século que o precedeu e que, apesar de tudo, ainda era bastante cultivada nos saraus aristocráticos. Desrespeitou, por isso, e intencionalmente, os padrões aristotélicos, rejeitando as «consagradas» leis das unidades. Na verdade, o seu teatro procurava sobretudo desmitificar a produção teatral e criar um verdadeiro teatro português. Se não foi mais longe, tal ficou a dever-se tanto ao barroquismo que enformava os gostos da época como à curta existência de que desfrutou.
Com uma vida curta, deixou-nos mesmo assim uma obra que prenunciava já a magnitude do seu talento se a morte o não tivesse ceifado cruelmente e tão cedo. Camilo Castelo Branco, sensibilizado pelo seu sofrimento, haveria de dedicar-lhe um dos seus romances históricos, mas caberia já a um dramaturgo do século XX, Bernardo Santareno, a glória de colocar em teatro a biografia de António José da Silva, na peça que intitulou precisamente O Judeu e na qual alcança um dos mais elevados momentos da dramaturgia portuguesa de todos os tempos.
Vida do Grande D. Quixote de la Mancha e do Gordo Sancho Pança
«Vou a castigar insolentes, a endireitar tortos», assim definia D. Quixote o rumo da sua missão e esta foi igualmente a intenção de António José da Silva ao transpor para o teatro, de forma absolutamente livre, a famosa novela cervantina.
Tal como em Cervantes, também o D. Quixote do Judeu se afasta do modelo clássico do herói, assumindo-se mesmo como um protótipo do anti – herói. Frequentemente perde a razão e a lógica, confrontado com a própria realidade ou mesmo com os argumentos aparentemente idiotas de Sancho Pança. E não custa ver neste camponês tão ambicioso como ingénuo, tão boçal quão esperto, mas sempre impregnado de uma profunda sabedoria popular, uma espécie de antecipação do famoso Zé Povinho que Bordalo Pinheiro viria a criar século e meio mais tarde.
Se o sonho e a utopia estão presentes em D. Quixote, não é menos verdade que também Sancho acredita em promessas e apesar de os fados não o presentearem com a tão ambicionada ilha, não deixa de correr atrás da miragem, ao lado de seu amo, que ora critica, outras vezes ridiculariza e insulta, reconhecendo-lhe a doideira, mas que apesar de tudo segue de forma obediente. Como aquele cão que mesmo sendo por vezes mal tratado não deixa de ser fiel ao seu dono.
António Gedeão escreveu que «onde Sancho vê moinhos, D. Quixote vê gigantes», mas também Sancho Pança vê claramente o rio, o monte e a azenha e mesmo assim ainda crê que aquele barco da cena I do II acto poderá levá-lo à ilha de que será governador. Tal como antes, no Parnaso, se entusiasmara com Apolo e os poetas e ele próprio se envolvera na luta, ao lado de seu amo, para libertar Apolo dos poetas, aqueles que o deus confessa que «não são de nome; e contudo cada um cuida que é mais do que eu mesmo». E, aguçando a sua mordacidade, Sancho reconhece perante D. Quixote, com verrinoso acento: «que vossa mercê entre no Parnaso, não é muito, porque é louco; porém, eu, que, sendo um ignorante, também cá esteja, é o que mais me admira; e daqui venho agora a concluir que não há tolo que não entre hoje no Parnaso», reconhecendo pouco depois que «com esta gente sou eu gente».
Se toda a peça é uma crítica acerba contra o modo de vida coetâneo da aristocracia inculta e pretensiosa, é-o igualmente de outras classes sociais, tais como a burguesia e o próprio povo.
Ninguém está a salvo de críticas e entre aqueles que António José não perdoa, conta-se a plêiade de poetastros que enxameavam os salões e as academias da época, empoados de rendas e perfumes baratos com que desodorizavam as más letras.
Na peça se ridicularizam costumes mas também concepções de justiça e não raro a gargalhada nos estoura, espontânea, perante o burlesco de algumas situações e da linguagem que se solta, inesperada, da boca das personagens. É o caso da cena IV do II acto, quando Sancho reconhece haver várias modalidades de justiça:
SANCHO ― «… há justiça direita, há justiça torta, há justiça vesga, há justiça cega e finalmente há justiça com velidas e cataratas nos olhos».
E quando lhe apresentam um homem que misturou água em vinho, Sancho não hesita em decretar o seu enforcamento, «sem apelo nem agravo». Maria Parda não seria, por certo, mais cruel. E esta sentença remete-nos ainda para a crítica nas Obras do Diabinho da mão furada, onde se satirizam os que baptizam com água o vinho e o tornam santo.
Mais uma vez, quando Dulcineia se apresenta encantada, ao lado de Merlim, e o feiticeiro proclama que para desencantá-la terá Sancho de sofrer «trezentos açoites bem puxados», o criado logo observa, incrédulo e irreverente:
SANCHO ― Diga-me, senhor Merlim, que tem o meu cu com o desencanto da senhora Dulcineia?
As concepções vigentes de uma Moral hipócrita e de uma Política protagonizada por habilidosos cultores do ancestral «Chico-Espertismo» nacional constituíam o pano de fundo da obra do Judeu e em D. Quixote, como noutras comédias, constitui uma presença tão permanente e inquietante que o autor se via constrangido a ver representadas as suas peças sem que fosse divulgado o seu autor, evitando mais problemas do que aqueles que já então houvera sofrido.
Sancho, o «ícone» do povo, não decreta à mulher que foi enganada e quer casar com o «atrevido» que fugira sem se comprometer com ela, que fique agrilhoada até que apareça o homem com quem ela quer casar? Será ousado ver nesta crítica à justiça um exemplo do absurdo que então, como hoje, levava a condenações verdadeiramente insólitas? Em certa medida, este Sancho já «entronizado» como governador, remete-nos, na sua interpretação da justiça, para o Juiz da Beira, de Gil Vicente.
É a mesma sociedade da hipocrisia, da incultura e da frivolidade que nos aparece com retratos grotescos em Guerras do Alecrim e Mangerona. São os políticos quem pretende atingir-se quando Sancho, na eminência de vir a tornar-se Governador, é aconselhado por D. Quixote:
D. QUIXOTE ― Sancho, vê que vais a governar; olha que deves ter diante dos olhos a Justiça.
SANCHO ― Sim, senhor, eu logo a mando pintar e a porei diante dos olhos.
D. QUIXOTE ― Não te corrompas com dádivas.
SANCHO ― Eu me salgarei, para me não corromper.
D. QUIXOTE ― Sancho, em duas palavras: Amar a Deus, e ao teu próximo como a ti mesmo.
SANCHO ― Ámen.
Ora, são estes ámens que todos proferem indistintamente, muito embora tenham previamente fechado os ouvidos às regras de seriedade.
Sátira social com nítidos laivos de uma tradição vicentina que provavelmente estaria ainda no espírito de algum teatro que não teria deixado de representar-se nos pátios lisboetas, ambiguidade nos sentidos das palavras e das frases, sarcasmo disfarçado de ingenuidade e vestindo roupagens de sonhos, eis alguns dos muitos artifícios de que o Judeu se servia para passar a sua mensagem. Contudo, sempre trabalhando com bonecos como actores, não apenas porque esse era um tipo de teatro em voga, mas porque eram mais atenuadas as conotações das falas atribuídas aos bonifrates, evitando a ameaça da espada censória sobre as cabeças de actores de carne e osso.
Diga-se que O CAVALEIRO DA TRISTE FIGURA de Cervantes nos surge em António José da Silva com uma figura bem menos triste, por vezes mesmo mais repentista, mais irónica, deixando nas entrelinhas muito do vinagre crítico de O Judeu.
Nas múltiplas situações criadas pelo genial dramaturgo, não se nos afigura estranha uma mesmo que velada influência de Molière. Com efeito, não é apenas a sociedade no seu todo que merece o gozo do Judeu, mas vislumbram-se mesmo proximidades caracterológicas com figuras do panteão dramático molieriano: Teresa Pança tem muito da Martinha de O Médico à Força, e Sancho poderia muito bem ser primo chegado de Esganarelo. Tal como o «Médico» que aconselha Sancho a «comer com temperança», porque «o muito comer estraga a natureza», merece do governador o epíteto de «asno».
MÉDICO ― Primeiramente, senhor Governador, há-de vossa mercê comer com parcimónia.
SANCHO ― Parcimónia é cousa de comer?
MÉDICO ― Parcimónia é comer com temperança.
SANCHO ― Isso de temperos pertence ao cozinheiro.
MÉDICO ― Temperança, por outro nome, é o mesmo que comer pouco e com regra; pois, conforme a melhor opinião dos modernos, o muito comer estraga a natureza.
SANCHO ― Ainda esta é pior! Ora digo-vos que sois um asno. O comer muito é proveitosos para a barriga, porque se enche.
Tão próximos estamos aqui das cruéis e mordazes diatribes de Molière contra médicos e cirurgiões do seu tempo, que parece que entre a França do século XVII e a Lisboa do século XVIII haveria menor diferença mental que temporal.
O D. Quixote de António José acaba vencido (mas não humilhado) às mãos de Sansão Carrasco: é a vitória do pragmatismo sobre a utopia idealista. Mas não será, igualmente, o reconhecimento por parte do Judeu, da inutilidade prática do seu combate contra forças bem mais poderosas? Mas, enquanto em Cervantes o seu herói termina abatido, cansado e triste, o D. Quixote lusitano não deixa ficar essa impressão e mantém mesmo (por omissão) a hipótese de que se trata apenas, no fim da peça, de uma espera por melhor oportunidade para um regresso ao combate. Mesmo que Sancho proclame, no final:
SANCHO ― Tão alegres que viemos, e tão tristes que tornamos.
Estes versos, porém, não têm correspondência lógica com as réplicas que os antecedem. Veja-se que após vencer D. Quixote, Sansão Carrasco intima o cavaleiro a recolher-se em sua casa, não tomando armas, pelo espaço de dez anos.
Estaria António José da Silva esperando retomar o tema? Ou apenas crente que algo mudaria, no futuro, que permitisse a D. Quixote/Judeu retomar o seu combate?

Concluindo: tendo em conta as personagens das várias comédias do Judeu e a sua própria biografia (nomeadamente a luta que empreende aquando da sua primeira prisão no cárcere inquisitorial), bem como os alvos que pretendia atingir com as suas críticas mordazes, em nenhuma outra nos parece podermos encontrar alguém que, como D. Quixote, encarne tão perfeitamente a figura de um altar-ego de António José da Silva. Ao mesmo tempo que não temos quaisquer dúvidas em poder vislumbrar-se em Sancho Pança a consciência de autocrítica que o poeta e dramaturgo naturalmente não deixaria de retratar.
Sendo António José da Silva, por nascimento, uma figura que se destaca do vulgar plebeu, amigo de nobres e de intelectuais (como o Conde da Ericeira e o futuro Cavaleiro de Oliveira, entre outros), assumindo-se como o fidalgo D. Quixote, entronca as suas raízes mais profundas na plebe, que como poucos conhece, e cria um Sancho Pança entrosado na arraia-miúda com que diariamente se cruza nas suas andanças por Lisboa e pelo Bairro Alto.
FERNANDO PEIXOTO
[1] — AZEVEDO, Lúcio de — «O poeta António José da Silva e a Inquisição», in Novas Epanáforas – Estudos de história e literatura. Lisboa: 1932.
[2] — José de Oliveira BARATA discorda que as plateias do Teatro do Bairro Alto incluíssem as classes baixas, com base no argumento de que ali era o local escolhido pelos nobres para «construírem os seus palácios», não o considerando, por isso, um «comediógrafo popular». Cf. História do Teatro Português. p. 226.

1 comentário:

Anónimo disse...

aproveito esta oportunidade de agradecer a nossa cavalgada juntos no ciclo de conferencias sobre cervantes e sobre D. Quixote.
Como sempre o teu discurso é claro e também cheio de erudição. haveremos de realizar outras aventuras
um abraço amigo merino