(Comunicação proferida em 9 de Janeiro de 2003, na Mesa-Redonda «Teatro e Ensino», no Mercado de Ferreira Borges, no decurso das comemorações dos 20 anos da ESAP/CESAP)
Há o mel e a cera; há as abelhas e as vespas. Uns espetam para estimular a produção; outros para destruir o que foi produzido. Assim acontece na colmeia do teatro; assim se passa na comédia da vida.
Sarah Kane pertencia à geração dos filhos de Margareth Tatcher e suicidou-se aos 28 anos. Miguel Rovisco era o fruto da geração dos anos 60 e pôs termo à vida aos 27. Será que alguém sabe, verdadeiramente porquê?
Sarah Kane pertencia à geração dos filhos de Margareth Tatcher e suicidou-se aos 28 anos. Miguel Rovisco era o fruto da geração dos anos 60 e pôs termo à vida aos 27. Será que alguém sabe, verdadeiramente porquê?
Um e outro, contudo, deixaram-nos obras não só importantes como promissoras do que poderiam ainda criar se, para tão vasto talento, não tivesse sido tão curta a vida.
Mas também no seio do mundo teatral há os Iagos, despudorados, ambiciosos, para quem tudo vale desde que «apareçam» e logrem um reconhecimento oficial e público que os seus méritos quase nunca justificam: são eles que se colam aos poderes mutáveis, estão sempre disponíveis para a metamorfose e como vespas insaciáveis sugam o néctar dos cifrões que a bajulação coloca ao seu dispor. Outros, corporizando Antígonas ou rebelando-se como Prometeu, cientes que o dever é mais importante que o conformismo, são as abelhas diligentes, não sustêm a labuta permanente, convictos do mel que é imprescindível para combater os amargos sabores da vida, e num colectivo solidário constroem os favos de que se alimenta o conhecimento.
Os primeiros têm amplos e sinuosos bastidores, bunkers onde se acoitam e dos quais desferem os seus ataques, dispõem de sofisticada maquinaria, espaços de luxo, gabinetes pessoais, direito de antena e outras «mordomias» que o poder do Político lhes prodigaliza. Os segundos são os «Sem-Terra», os «Sem-Abrigo», os despojados, capazes de ultrapassarem as maiores dificuldades pelo recurso à imaginação que só uma convicção profundamente solidária alimenta.
De onde vem e porquê esta abissal diferença, esta ancestral discriminação?
Há dias fui a um leilão: gente endinheirada disputava quadros que queria levar para casa por milhares de contos; alguns batiam-se por adquirir uma escultura; outros ofereciam lances inimagináveis por pequenas peças de cerâmica. Ninguém adquiriu uma colecção de primeiras edições de peças de teatro de um conhecido autor português que custava cerca de 200 euros!
Será que alguém sabe, verdadeiramente porquê?
O Teatro é uma criação que usa as palavras, as paixões e os corpos como arma.
Se as palavras, no dizer de Stendhal «são sempre uma força que procuramos fora de nós», e Eurípides aconselhava mesmo «fala se estás na posse de palavras mais fortes do que o silêncio, senão mantém-te calado», então o Teatro, que as utiliza mais que ninguém, é a arte que mais estilhaça os espelhos do silêncio, é o canhão que dispara contra os muros do medo e do conformismo, é a trovoada que rasga as veias das fontes do sonho com que se alimenta o Futuro.
Mas o Teatro não existiria se lhe fosse impedido respirar a aragem das paixões, porque «as paixões ensinaram a razão aos homens», como escreveu William Shakespeare, n’A Tempestade, antecipando de alguns séculos as conclusões científicas de António Damásio.
Esta arte, que Téspis divulgou na sua itinerância pelos caminhos gregos da descoberta do Homem, constitui um corpo complexo, que não vive apenas da pele que o reveste (o cenário), dos ossos que o sustêm (os adereços), dos nervos que o impelem (as emoções), mas do sopro de Vida que as mulheres e os homens que o fazem respiram, no quotidiano das ruas, nos palcos, nos bastidores, em qualquer local onde haja seres humanos dispostos ao diálogo, à reinvenção do real e à recriação do mundo que os envolve.
O criador teatral sabe bem da importância do seu acto e, muitas vezes, dos perigos que corre. Mas insiste, porque «criar é matar a morte», como dizia Romain Rolland. E, a propósito da criação, o grande Jean Genet sabia muito bem o que dizia quando afirmou que «criar não é um jogo mais ou menos frívolo. O criador meteu-se numa aventura terrível que é a de assumir ele próprio, até ao fim, os perigos que enfrentam as suas criações».
Por tudo isto o Teatro é perigoso: é que ele aponta, grita, mostra, apela, denuncia, esclarece, descobre, desafia, inventa e renova, transforma-se noite após noite porque não há dois espectáculos iguais, experimenta, interroga, agride e abraça, cospe e beija: é a Vida, em suma, no seu continuum dialéctico.
Louis Jouvet, definiu-o como uma colmeia «onde se transforma o mel do visível para fazer dele o invisível». E desse invisível da Vida se alimenta o sonho, como maravilhosamente nos fez compreender Calderón de la Barca.
A teimosia do sonho e a capacidade de materializá-lo, deverão constituir sempre o horizonte perseguido pelos criadores teatrais: os autores, os actores, os encenadores e todos quantos constituem o exército indómito dos obreiros do combate pela dignificação do Teatro. Por isso, é frequente depararmos com aqueles cuja paixão pela arte dramática supera as mais incríveis limitações. E frequente é também ver autores e actores transformados em Pigmaleões apaixonados pelas Galateias-personagens que eles próprios esculpiram sobre o palco.
Por tudo isto o Teatro foi sempre uma espécie em vias de extinção, mas que vem resistindo porque enquanto houver um homem e uma mulher que se recusam a ser fósseis — e ser fóssil, aqui, significa deixar de sonhar — o teatro há-de levantar-se sempre, como fénix renascida das cinzas em que os inquisidores tentam «assá-lo» há milénios.
É que a imortalidade da criação e da arte teatral provoca ainda nas classes possidentes um medo pavoroso. E poucas artes possuem, como o Teatro, a possibilidade de despertar as consciências.
Num estudo recente, que serviu de base a Vítor Rodrigues para a sua dissertação de doutoramento em Psicologia, aquele investigador chegou à conclusão de que os textos de Gil Vicente são os preferidos dos alunos do 10.º ano de Português B, a que se seguiam Os Lusíadas. Apesar destes resultados, já a partir de Setembro deste ano (2003), estes textos vão ser retirados do programa do 10º ano, como consequência da revisão curricular!
A notícia veio no Público de 3 de Janeiro deste ano e entre as várias conclusões a que chegou aquele psicoterapeuta, salienta-se a de que os alunos manifestam um maior grau de atenção frente a um docente que lhes fala de forma clara, melodiosa, expressiva, aconselhando mesmo os docentes a recorrerem a «uma linguagem mais metafórica e emocional» como forma de potenciar uma maior motivação dos alunos.
Mas será isto que acontece na generalidade dos casos? Há, por acaso, formação a este nível, dada aos docentes nas célebres cadeiras pedagógicas das Faculdades que formam os futuros professores? Sabem eles colocar a voz? Utilizam o rosto, as mãos, o corpo, como complementos expressivos?
Formam-se professores de Letras e de Ciências sem a mínima preocupação de os preparar para os difíceis percursos da comunicação oral, e ignora-se mesmo a enorme importância da comunicação corporal, como se isso fosse matéria exclusiva para uns pobres-diabos que não têm que fazer e por isso mesmo se dedicam ao estudo incipiente do Teatro em alguns (poucos) cursos das ESE’s.
Mesmo ao nível do ensino básico, faixa etária em que as crianças carecem de mecanismos diversificados de descoberta que a expressão dramática potencia, como a experiência no-lo tem provado, o recurso àquela forma de expressão tem sido sistematicamente ignorada.
Um exemplo, apenas. Numa escola do 1º ciclo do ensino básico de Gaia, foi dado a ler aos alunos um texto sobre a lenda de Gaia. Dos que o leram — e não foram muitos — poucos o entenderam e nenhum se entusiasmou particularmente com a lenda.
Fomos convidado a contá-la oralmente a um grupo de cerca de centena e meia de crianças, algumas portadoras de diferentes níveis de deficiência motora e intelectual. A estratégia que adoptámos foi a de reunir todas as crianças num recreio térreo e distribuí-las de acordo com as suas preferências: uns eram os cristãos, outros os mouros, alguns reis, outros rainhas ou princesas, cavaleiros, etc. Introduzimos lentamente pequenas porções da história que eles iam mimando. A cena da batalha entre mouros e cristãos, com o rapto da princesa Gaia, constituía o desfecho da lenda. Todos as crianças se envolveram numa «luta» coreográfica, na qual as espadas eram os próprios braços com os dedos indicadores esticados. Um ligeiro toque no colega bastava para simular a sua «morte».
O resultado foi verdadeiramente entusiástico. Durante dias aquele «jogo» foi não só o tema das conversas como serviu de pretexto para composições escritas, desenhos e pinturas. E, curiosamente, muitas quiseram ler posteriormente aquela mesma lenda numa versão que existe em banda desenhada.
É certo que os planos curriculares dos alunos do 1.º ciclo contemplam espaços para as expressões artísticas como a educação musical, plástica ou dramática. Mas quantos docentes estão habilitados a leccioná-las? Nos ciclos seguintes o panorama não é mais animador.
O teatro, pela versatilidade dos meios que emprega, pelos recursos de que se serve, pela abrangência cultural que suscita, constitui — quanto a nós — o veículo privilegiado de acesso ao conhecimento pela via do lúdico. Ele influi e exercita as capacidades motoras, organiza o raciocínio lógico, fortalece a «musculatura» da memória, melhora a articulação das palavras e orienta as necessidades respiratórias; serve-se da Literatura, da História, da Filosofia, da Música, das leis da Física, das Artes Plásticas, utiliza os recursos do meio e provoca a imaginação; questiona mais do que afirma, bebe profundamente nas águas da Psicologia, cria tensões e promove solidariedades, em suma: provoca um amplo e harmónico desenvolvimento humano.
Apesar de tudo isto e do muito mais que poderia ainda acrescentar-se, continua a ser o parente pobre do Ensino.
Será por acaso? Não haverá por aqui algum maquiavelismo escondido com o «príncipe» de fora? Será por ignorância ou ingenuidade dos políticos que o desenvolvimento do teatro se processa sempre de forma lenta e em contra-corrente?
Sabiam que o Teatro é irmão do Político e quase nunca estão de boas relações? Porque, filhos ambos do mesmo Pai (o Homem) e da mesma Mãe (a Natureza Humana), ambos intervêm no quotidiano e os seus objectivos entram frequentemente em conflito.
O Político sabe perfeitamente do grande amor que o Teatro tem pela Liberdade e como quer, casado com ela, despertar os homens e o mundo. O Político materializa a ancestral vingança de Zeus contra Prometeu: o Político, embebido nas teias eróticas da Ambição, busca uma relação promíscua e de conveniência que lhe permita decidir, juntamente com a sedutora, da vida e do destino dos humanos, sem ser perturbado pelo fogo do conhecimento que o Teatro pode levar às massas.
Ao longo dos séculos temos assistido a sistemáticas tentativas de fratricídio, com o Político (vestindo trajos de tirano ou de religioso) a tentar amordaçar ou mesmo apunhalar o irmão Teatro. Primeiro na Grécia, onde se tentou calar os dramaturgos; assim foi em Roma, porque Nero não logrou ser o actor de fama que ambicionava; assim foi, durante séculos, nos primórdios do cristianismo. Mas, viajando de carroça ao longo dos tempos, mais tarde entrando de carruagem nos palácios dos mecenas e dos próprios reis, hoje viajando de carro, de comboio ou de avião, tendo já um lugar cativo na própria NET, o Teatro sobreviveu sempre.
Crucificado e recrucificado, o Teatro soube sempre reerguer-se do túmulo onde o Político pretendeu sepultá-lo e de cada vez partiu com uma nova mensagem, com um novo sorriso, com uma nova vontade, com uma nova esperança, com um novo sonho, com um novo projecto de Futuro.
Num palco convencional ou numa barraca improvisada, na arena de uma praça ou no espaço estreito de uma rua, no interior de um supermercado ou num recanto de um qualquer centro comercial, o Teatro acontece, pode acontecer, e em todas essas ocasiões é o Homem, o Homem autêntico que se procura a si mesmo para construir o seu próprio itinerário, para criar o seu próprio Futuro. Aí reside a sua força. Aí habita a verdadeira Fé que só os crentes da religião teatral cultivam: um Amanhã diferente com um Homem diferente. Porque, como escreveu Elsa Triolet, «o futuro não é uma melhoria do presente. É outra coisa».
«un pueblo que no ayuda y no fomenta su teatro, si no está muerto, está moribundo». — FEDERICO GARCÍA LORCA
Rompamos o silêncio! Apedrejemos a ignorância! Expulsemos o oportunismo! Matemos a morte! Façamos Teatro!
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