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quarta-feira, dezembro 07, 2005

DIONÍSIO E AS MUSAS



Seria impensável conceber o Teatro sem a Poesia. O contrário é igualmente verdade.
Seria mais impensável, ainda, conceber o Teatro (essa Arte nascida sob a égide de Dionísio) sem o contributo das Musas:
Clio, aquela que transporta consigo a memória histórica;
Euterpe, a que desde sempre ligou o Teatro à música, desde a flauta dos ditirambos ao nascimento da ópera;
Talia, a musa da comédia, que concedeu aos dramaturgos e aos espectadores do Teatro os momentos de alegria e de sarcasmo sem os quais a vida seria verdadeiramente insuportável. Que o digam Aristófanes, Plauto, Molière e tantos outros, que diligentemente a invocavam;
Melpômene, a musa da tragédia, que sempre nos recorda que a dor, sendo a antítese da alegria, é o caminho que nos leva à catarse dos nossos sofrimentos individuais e colectivos;
Terpsícore, musa da dança, a mesma que nos impele aos movimentos harmoniosos do corpo, ao som da música e das palavras, e que desde os tempos mais ancestrais fez dos rituais da dança o veículo primordial da comunicação humana;
Urânia, a musa da astronomia, sempre cuidando em recordar-nos a dimensão minúscula de poeira cósmica que todos somos na imensidão do universo, como se pretendesse dizer-nos:
― Cuidado! a ambição é apenas a dimensão mesquinha dos seres inferiores...
Érato, musa da poesia lírica, que aos poetas dá as mãos esguias e belas para os conduzir na senda do sonho e dos sentimentos mais amorosos;
Polímnia, enquanto musa da retórica, é também imprescindível para os amantes do Teatro; sem ela, como convencer os olhos vendados dos autoconvencidos? Como fazer-lhes perceber que a verdade tem vários percursos e que é necessário trilhá-los a todos para encontrarmos o horizonte da fraternidade?
Finalmente, a nona musa, Calíope, a da poesia épica, aquela que confere ao homem a capacidade de se auto-superar, tornando-se herói de si mesmo na luta contra a adversidade e o infortúnio. Teriam sido possíveis a Ilíada, a Odisseia, a Eneida ou mesmo Os Lusíadas, sem o sopro vital de Calíope?
O Dramaturgo é também um Poeta, quer ele produza os seus textos sob a forma da prosa, quer utilize o verso. Com um ou outro recurso, ele é sempre um homem que congrega em si as dores, as alegrias e as expectativas de todos os outros homens que conhece e de quem se torna o porta-voz. Ele é como um eco colectivo que se repercute nos vales e montanhas das folhas de papel, primeiro, e se prolonga em ondas sonoras atravessando atmosferas de palcos e plateias, depois.
Durante séculos, Teatro e Poesia mantiveram uma vida conjugal estreita e, se nem sempre feliz, pelo menos sempre conviveram acreditando que sem o seu exemplo a vida humana seria bem menos tolerável.
Assim foi de Ésquilo a Menandro, de Plauto a Terêncio, de Hrowsvitha a Hans Sachs, de Juan del Encina, passando por Gil Vicente, a António Ferreira, de Calderón de la Barca a Shakespeare, de Corneille a Molière, de Klinger a Goethe... E mesmo Garrett, redigindo em prosa o seu Frei Luís de Sousa, careceu do tirocínio dos versos de Camões e D. Branca. E, já no século XX, Lorca e Brecht mostraram-nos à saciedade o quanto o Teatro permanece enfeitiçado pelas palavras da Poesia.
Fizeram amor Dionísio e as Musas, o Teatro e a Poesia, e dessa união entre o Fingimento e a Palavra nasceram filhos múltiplos: o Amor, a Esperança, o Sonho, a Cultura, o Riso, o Choro, a Harmonia, a Beleza, o Encanto, a Ilusão, a Utopia, e muitos outros que tornaram tão rica a vida do Homem sobre a Terra. E disso resultou a inveja dos deuses que, nas suas religiões, sempre procuraram amputar as desmedidas asas do Teatro e da Poesia.
Hoje, quando o homem se debate confuso num mundo em permanente transformação e transfiguração, quando ele começa a sentir a perda da sua individualidade em favor da estandardização do modelo global que a todos vai procurando moldar com formas, limites e desejos estereotipados e préformatados, acentua-se a crise do amor que durante milénios uniu o Teatro e a Poesia.
Ao incorporar linguagens estéticas múltiplas, o Teatro só se materializa plenamente orbitando na galáxia da linguagem poética, seja através do verso rimado, da métrica rígida, seja pela via do verso branco ou mesmo da prosa. Todavia, mesmo na prosa, o efeito dramático é sempre uma consequência da palavra erguida à potência poética.
Drama e Poesia nasceram sob o mesmo signo e a sua etimologia original revela uma síntese que pode exprimir-se pelo vocábulo FAZER. O Drama era a «história» vivida e a Poesia a forma de contar essa mesma «história». Pelo verso, que confere a necessária tonalidade e intensidade dramática à voz, se pode exprimir a totalidade da carga emotiva que justifica a existência do drama. E se o drama se vive em diferentes intensidades e ritmos, o verso tem a capacidade de reflectir esses ritmos como um espelho das emoções, servindo-se das palavras e da sua sonoridade para nos sugerir o grau de intensidade com que se vive a experiência dramática.
Na vida de cada homem sucedem-se e sobrepôem-se os mais diversificados signos. Uma composição poética vive, essencialmente, da pulsação diferenciada desses mesmos signos, das suas múltiplas errâncias, dos seus trajectos ora convergentes, ora divergentes. Um Homem sente pelo espírito. E como consequência das sensações que colhe, transmite toda essa vivência através da palavra.
Assim, se a Poesia vive no Teatro, também é verdade que o Teatro vive na Poesia. Há tanto de teatral nos sonetos de Shakespeare, como há de poesia na tragédia de Hamlet.
O universo poético contém em si mesmo os genes do drama, tal como o universo teatral encerra no seu cosmos o brilho das estrelas-palavras da Poesia.
Se na Poesia há toda uma combinatória de signos, no Teatro convive uma complexa semiótica que vai da palavra ao gesto, do afloramento de um sorriso à contenção da própria respiração.
Por tudo isto, pensamos que é tão importante e está tão interligado o espaço de um simples papel em branco, quanto o tablado vazio de um palco nos momentos que antecedem o espectáculo.
Ambos, como numa tela, apenas aguardam as pinceladas criativas do poeta fazendo escorrer as palavras, ou os movimentos e o som dos actores que insuflam de vida o espaço de um tablado antes vazio e insignificante.
Como muito bem recordou Octavio Paz, «no hay teatro sin palabra poética común».
Ora, é esta palavra comum que o poeta toma e transfigura, tal como se toma a si próprio e se transforma no outro que os seus poemas descrevem.
Em tudo isto se revê também o Teatro, o teatro do dramaturgo e o teatro do actor, porque em ambos se parte de um EU para atingir um OUTRO: o drama e a personagem, tal como Pessoa se definiu na céelebre quadra do poeta fingidor, que finge ser verdade aquilo que era já (e sempre foi) uma ... verdade!
Concluindo: Poiesis, palavra de origem grega cujo significado apontava originalmente para criação e acção, assumiu mais tarde o significado de arte de poetar.
O Teatro, nascendo no mesmo berço da Poesia, com ela cresceu e aprendeu a dar os primeiros passos. Fundiram-se: tornaram-se Humanos.
Foi isso, precisamente isso que percebeu Federico García Lorca, quando escreveu que «o teatro é a poesia que sai do livro e se faz humana».
DRAMATURGOS E POETAS DE TODOS OS PAÍSES: UNI-VOS !


FERNANDO PEIXOTO

1 comentário:

Anónimo disse...

Professor, que belo trabalho!
É um prazer ler e aprender com tão competente Mestre. Os Deuses e as Musas foram agradados...
Um abraço da sempre aprendiz,Carol