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terça-feira, novembro 15, 2005

O ENCENADOR, CONSTRUTOR DE SONHOS


O Teatro é a arte que mais estilhaça os espelhos do silêncio, é o canhão que dispara contra os muros do medo e do conformismo, é a trovoada que rasga as veias das fontes do sonho com que se alimenta e de onde brotam as águas do Futuro.
Se desde sempre se percebeu, Shakespeare escreveu-o de forma brilhante: O MUNDO É UM PALCO!

TEATRO
Se o Teatro, no seu étimo original, é o lugar onde se vê, o vocábulo desaguou, mais tarde, naquilo que se vê.
Sendo primeiro a designação de um espaço privilegiado para o acto de ver, transformou-se posteriormente numa acção, ou seja, no acto intencional de ver.
Mas ver o quê? E quem vê?
Aquilo que se passa no palco de uma sala de espectáculos, num largo ou numa rua, sob um tecto ou ao ar livre, sob a luz do dia ou dos projectores, é sempre um conjunto de acções que buscam reflectir experiências, sentimentos, partilhas, sensações, expressas por palavras, por gestos, por olhares, por movimentos, pela articulação coordenada da voz, da expressão facial e do corpo, com recurso a acessórios ou adereços, a figurinos ou a maquinarias mais ou menos sofisticadas. Outras vezes, porém, servem-se apenas do espaço disponível, vazio, mas sempre emoldurado por um conjunto de pessoas: os espectadores.

O ACTOR
Se é verdade que os olhos são dos mais importantes meios de que se serve o actor, a par da voz com que se expressa e do corpo com que comunica, o seu cérebro é a máquina coordenadora de tudo quanto ele faz para estabelecer essa comunicação com os outros, personagens e espectadores.
O actor, encarnando a personagem, mostra-nos alguém que vive, respira, sente e age em consonância com as circunstâncias que condicionam a personagem parida na mente criativa do autor. E, como todo o ser humano, também esta personagem tem um trajecto, uma história de vida que vai desenrolar-se no espaço temporal da representação.

ACTOR COMO AFLUENTE
O que se vê numa representação? Precisamente um percurso, real ou imaginário, que se desenvolve numa vivência unipessoal, mesmo quando o actor/personagem contracena com outros actores/personagens. E cada um deles, sendo um pedaço de uma história individual, converge numa mesma intenção: mostrar o seu itinerário, imbricado no trajecto de todos os outros.
Assim, se conceptualizarmos a imagem de cada actor como se fosse um afluente, temos a representação do colectivo como um rio que recebe o contributo dos vários afluentes que nele desaguam.

A ACÇÃO DO ESPECTADOR
Cada um de nós, usufrutuários do espectáculo teatral, somos observadores desse «rio». Passivos, se nos limitarmos a vê-lo na sua corrida, a contemplarmos o brilho das suas águas, a admirar a maior ou menor amplitude da sua ondulação; activos, se deixarmos as margens onde o observamos e nele mergulharmos, fundindo o suor dos nossos corpos no fluído das suas águas, se nele nadarmos ou esbracejarmos, se nos deixarmos impelir pela sua torrente ou, pelo contrário, se procurarmos resistir, esforçando-nos por contrariar a sua corrente.

A CRIAÇÃO É SEMPRE DIALÉCTICA
Se o teatro, na sua multiplicidade de recursos e funções é uma obra de natureza artística (há mesmo quem ouse chamar-lhe a 8ª arte), ele não nasceu por mero acaso acidental. Na sua génese foi necessário um big-bang, ou um deus criador: o autor do texto ou do roteiro.
Mas também a natureza criada sofre mutações que alteram os desígnios primaciais do criador, tanto mais que este se limita a dar o impulso inicial ou, se quisermos parafrasear Aristóteles, «o motor imóvel» que projectou o movimento posterior.
O rio é muitas vezes condicionado pelas suas margens artificiais, deriva para novos percursos, aprisiona-se em barragens, sofre desassoreamentos.
Tudo isto, afinal, são intervenções humanas que desafiam a matriz original da criação.
O Homem, no seu sonho imparável de modificar a Natureza para dela se servir, não hesita em alterar os caracteres físicos dos elementos para deles colher aquilo que pensa poder materializar a sua ambição de felicidade.
Jean Duvignaud considerava o Teatro como «instrumento que inventa o homem ao representá-lo e que faz da existência uma criação contínua». Por isso, se o Teatro «inventa o homem», o contrário é igualmente verdade. O Homem, «fazedor de Teatro», refaz-se, recria-se, renova-se, transforma-se. E se é inconcebível que possa acontecer Teatro com um homem só, criador do seu próprio texto e representando exclusivamente para si mesmo, é igualmente inacreditável que o Homem possa conceber o Teatro como arte desprovida da sua função primeira: a partilha.
A maiêutica do encenador
Perante um dado texto (muitas vezes apenas um pretexto), um grupo e uma dada situação, o encenador vai encetar o seu processo de «maiêutica» (Do gr. maieutiké, «arte de fazer dar à luz»). Tomando como base aqueles três elementos existentes no útero do fenómeno teatral, o encenador adiciona outros três elementos para o «parto» do espectáculo. Com a sua vontade, a sua experiência e a sua sensibilidade, o encenador prepara-se para a «natividade». Durante meses e meses elabora meticulosamente tudo quanto acha ser necessário para dar à luz o «rebento»: o trabalho dramatúrgico, a cenografia, o desenho de luzes e de som, a concepção espacial, o trajo e o figurino, os volumes que conferirão maior ou menor importância às posturas e movimentos dos actores, desmultiplica-se numa multidão de tarefas apelando ao colectivo que com ele se empenha num mesmo objectivo. Mas, como qualquer mãe grávida, também o encenador «sonha», desde o primeiro instante da «concepção», como será aquele ser que transporta dentro de si.
Ele tem uma única preocupação: a perfeição. E sabe que só com o contributo dos restantes colaboradores poderá concretizar o seu desígnio. Então, como Sócrates, questiona-os, procura retirar de dentro de cada um deles o saber implícito que contêm, incita-os a tomarem consciência desse saber e a encetarem a tarefa mais bela que um homem pode desempenhar: o seu auto-questionamento. Assim, todos convergem para o sucesso do nascimento do espectáculo, exprimindo-se colectivamente pelos múltiplos desempenhos que lhes cabem e julgarão, no fim, da validade da obra que finalmente surgirá perante o público.

O ENCENADOR, UM CONSTRUTOR DE SONHOS
Como escreveu Louis Jouvet, «o teatro desperta as esperanças e as lembranças. Faz reviver uma sensibilidade que pode estiolar-se ou soçobrar» .
Será que «...o Homem sonha, a Obra nasce» ?, ou que «sempre que um homem sonha / o mundo pula e avança / como bola colorida / entre as mãos de uma criança» ?
Se «pelo sonho é que vamos», também é inquestionável que «o sonho comanda a vida». E Calderón de la Barca não hesitou mesmo em dizer-nos que La vida es sueño.
Em toda a concepção do espectáculo teatral o sonho é sempre o sémen da criação.
Desde a primeira hora em que pensa na montagem do espectáculo, o encenador enceta a viagem onírica ao imo da criação. Pelo meio despontam as imagens, mais ou menos coloridas, mais ou menos movimentadas, mais tranquilas umas, mais angustiantes outras, incursões destemidas no mundo do imaginário, batalhas consigo mesmo, com o texto, com os outros intervenientes, com os múltiplos condicionalismos, vive o sorriso do sonho feliz e a depressão do pesadelo, experimenta uma multitude de sensações que ora o impelem como um gladiador disposto a derrubar todas as adversidades, ora o deixam prostrado e exausto como um velho guerreiro no fim de uma batalha.
Mas sempre, sempre, é ele e o seu sonho quem comandam o processo criativo. O sonho é construído paulatinamente, num percurso que nada tendo de linear, está impregnado de um estoicismo que o impele a continuar, mesmo quando do fundo da «noite dos presságios» algo lhe ecoa: não vale a pena.
O encenador sabe que vale a pena, «vale sempre a pena» e por isso constrói, pois, o seu sonho e com ele avança na descoberta de um novo mundo, de um novo espaço, todo ele eivado de interrogações e dúvidas e, sem obter uma certeza, alcança pelo menos essa oportunidade única e reveladora do seu estado de inquietação, muito semelhante ao que nos referiu Jacques Copeau quando se interrogava, não sobre o que faria com determinada obra, mas sim sobre o que ela iria fazer consigo.
Inquietação, dúvida, expectativa, experimentação, luta consigo mesmo e com os «fantasmas da ópera» que espreitam e se escondem sucessivamente no decurso da montagem do espectáculo, eis o que condiciona o sonho do encenador. Mas é precisamente aí, nesse confronto de titãs entre o Homem limitado pelas algemas do quotidiano e o Criador do espectáculo dotado de poderes dionisíacos, entre o Sonhador que ignora o conceito de limite e o Operário que materializa, tijolo a tijolo, a construção do espectáculo teatral, que se concretiza a obra de arte total, como lhe chamava Adolphe Appia,
O Teatro, na sua forma final, o ESPECTÁCULO, transforma-se deste modo numa nova criação, numa manifestação artística que estenderá sob o mesmo leito, para a partilha erótica do Amor pela Arte, dois corpos em total sintonia: o Actor e o Espectador.
Tudo isto, em suma, só foi possível, só é possível, porque houve um encenador capaz de construir o seu próprio sonho e um espectador que com ele se disponibilizou a fazer Amor, partilhando o sonho: sonhando e disponibilizando-se para sonhar.
É esta a fórmula essencial da «obra de arte viva», a essência do Teatro.

Fernando Peixoto

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