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domingo, abril 13, 2008

TEATRO DE AMADORES E TEATRO PARA A INFÂNCIA

I - TEATRO DE AMADORES - TEATRO DE AMOR
O teatro de amadores constitui uma realidade artística com caracteres bem específicos e toda a tentativa em aproximá-lo do teatro de profissionais torna-se não apenas estultícia mas mesmo manobra de adulteração. É que, desde a proposta motivadora que está na origem do grupo de amadores, até à demonstração do produto final __ o espectáculo __ há todo um itinerário intermédio de diferenciados matizes, de soluções originais, de recursos específicos que só na aparência lembram os grupos profissionais. O que __ é bom que se diga __ em nada invalida a qualidade dos primeiros face aos segundos. Nem se pense __ como alguém já ousou fazê-lo __ estabelecer entre ambos uma relação como se o primeiro fosse uma espécie de boneco da Rosa Ramalho e o segundo uma escultura de conceituado artista do "mercado" das ar­tes plásticas.
O teatro de amadores possui uma idiossincrasia própria que lhe vem tanto de quem o faz como dos destinatários a quem se dirige. Mas também __ e essencialmente __ dos caracteres múltiplos que se lhe agregam, como resultantes do invariável destino da itinerância que marca indelevelmente as suas criações.
Os amadores constituem-se genericamente a partir de grupos de pessoas etária, social e culturalmente diversos e reside precisamente no eclectismo da sua constituição, uma das características mais notórias da sua existência. Por outro lado, são igualmente heterogéneos os públicos a que chegam, disto decorrendo exigências e opções bem distintas das que se colocam aos profissionais. Há muitas razões (outras) para explicar o estrénuo amor das gentes aos seus grupos e ao teatro. Mas de todas, por certo avultará o gosto adormecido em nós, adultos, por essa arte maravilhosa que em crianças tanto cultivámos: a arte sedutora do "faz-de-conta". Arte que seduz os actores, mas também, por empatia, os próprios espectadores.
Ora, parece-nos que o teatro de amadores possui condições privilegiadas no que toca ao teatro destinado à infância e, quando nele se encaminha preferencialmente, não raro obtém melhores resultados no contacto com as plateias. Cada vez é hoje mais notória a diminuição dos grupos de amadores nas grandes zonas urbanas, por contraste com a vitalidade dos grupos das zonas do interior ou mesmo rurais, fenómeno que a sociologia cultural por certo explicará e que não pretendemos aqui e agora dissecar.
Importa-nos, isso sim, chamar a atenção para uma outra realidade: o teatro de amadores é um teatro de amor. Não há nele a vedeta que salta de patrão em patrão à busca dum melhor vencimento; não há nele lugar para a ditadura intelectual do encenador, ou do cenógrafo e, bem pelo contrário, discute-se, quantas vezes com saudável ingenuidade, as próprias opções dos técnicos: não há nele a superação das incapacidades dos actores pelo recurso sistemático aos efeitos especiais, sofisticados, de luz, de cenários, de música, de figurinos, como tantas e tantas vezes se encontra nos profissionais; e, finalmente, não há nele contratos vinculativos, como algemas, entre os actores e a companhia. Do teatro de amadores se sai, para ele se entra, sem que por um só momento perigue a nossa liberdade. Adesão, entrega, dádiva total, contrato de amor, em suma, que tem como única contrapartida a reciprocidade desse amor, traduzida nos aplausos da plateia.
Uma relação amorosa deste tipo implica necessariamente uma grande dose de disponibilidade afectiva, razão pela qual afirmámos atrás que o amador de teatro está, assim, em condições privilegiadas para desenvolver o teatro para a infância. Ninguém, como as crianças, possui uma tão grande capacidade de receber e retribuir afectividade.
II - TEATRO PARA A INFÂNCIA E NÃO TEATRO INFANTIL
Também pertencemos ao número cada vez maior dos que rejeitam a expressão "teatro infantil".
Se aceitamos que o teatro é uma arte, aceitaremos desde logo a sua universalidade. E tal como os sons duma sinfonia serão escutados de forma diferente, conforme os gostos, a sensibilidade e a cultura musical dos ouvintes, também a linguagem teatral será absorvida ou terá diferentes leituras, consoante o nível etário, cultural ou social dos espectadores. Nada disto, contudo, impede que se crie uma obra de arte a pensar num público específico. O "Pedro e o Lobo" de Prokofiev, não deixará de ser belo quando escutado por crianças ou apenas por adultos. Charles Dickens seduz igualmente novos e velhos e os contos dos Grimm ou de Andersen não perdem o fascínio desde que o leitor não se acoberte sob a capa do adulto imbecil e insensível. Já vimos, de resto, dezenas de crianças vibrarem com peças de Gil Vicente ou Molière, permanecendo indiferentes e mesmo frias diante de espectáculos que lhes eram especificamente destinados. A própria pintura pode ser mais facilmente entendível por uma criança do que por um adulto leigo e insensível. É o caso, por exemplo, da pintura egípcia, cujos cânones por vezes nos recordam os desenhos feitos por crianças. E o cubismo, nos seus princípios originais, estaria assim tão distante da "visão" infantil sobre os objectos ?
Mas que teatro, então, para a infância ?
Concordamos que se pode e deve escrever propositadamente para as crianças, tal como se deve criar espectáculos para elas. Mas num como no outro caso, terá de presidir a preocupação primacial, isto é, criar arte. E deve-se precisamente ao esquecimento desta necessidade primeira o aparecimento de textos e realizações verdadeiramente primárias, no sentido pejorativo do termo, de peças sem o mínimo de qualidade, que mais não são que verdadeiros atentados à capacidade intelectual das próprias crianças.
Ora, um texto ou uma representação teatral não podem constituir atestados de menoridade. É necessário, parece-nos, que antes de mais o adulto se preocupe em fornecer instrumentos que permitam à criança a descoberta do conhecimento, que a sensibilize para os problemas com que terá de defrontar-se num quotidiano de progresso físico e de evolução intelectual, que ela aprenda a reconhecer e a respeitar as diferenças, via importante para ir limando as arestas do egocentrismo típico da infância; que se lhe estimulem as várias capacidades, como a de observação, de análise, de criatividade, num programa coerente que não erradique nem condicione a variedade de leituras própria dos diferentes níveis etários.
Há, ou deve haver, pois, uma preocupação formativa, orientadora, não dirigida. A criança é um ser em formação e não um adulto anão, mas tem da liberdade e dos seus direitos noções muito próprias que o adulto não tem o direito de violar. É generosa e disponível, dois importantes capitais que o teatro não pode inflacionar, e sobretudo possui grandes necessidades de descoberta e de afectividade.
O teatro de amadores, pelo seu contacto com públicos heterogéneos, por vezes mesmo bastante espontâneos nas suas reacções, não raro intervindo com comentários no desenrolar da acção, públicos que não se retraem de em qualquer momento tomar partido, está em condições invulgarmente vantajosas para melhor compreender uma plateia despida de vícios como a infantil.
É óbvio que falamos do teatro de amadores que se assume conscientemente como tal, e não de grupos que, usando a mesma etiqueta, se preocupam apenas em camuflar-se de profissionais sem vencimento, ou aqueloutros, doentes endémicos do vedetismo, apenas interessados em pisar os palcos para exibição narcísica ou para colmatar frustrações ancestrais.
Possuidores duma experiência que lhes vem da vida fora dos palcos, a que aduzem o trabalho cultural do teatro, os amadores podem __ e fazem-no __ proporcionar às crianças um teatro que é já uma obra de arte, mas essencialmente um instrumento importante para o desenvolvimento do processo de conhecimento.
III - ALGUMAS QUESTÕES DE PORMENOR
É sabido que uma plateia infantil barulhenta constitui sintoma de que se está perante uma obra desinteressante e nessa altura é preferível mandar calar o espectáculo.
As reacções ao espectáculo para a infância são díspares e por vezes totalmente inesperadas. É que a criança reage a pormenores ou a situações em consonância com a idade que possui, o que condiciona, naturalmente, a sua atenção e a sua sensibilidade. Ela rejeita a inverosimilhança, mas aceita a fantasia; é atraída para a cor, para a forma, para o som, para o movimento, mas são diferentes os níveis de sensibilização provocados por estes estímulos e por isso o espectáculo teatral pode ser recebido de modo diferente consoante a predominância de um ou de outro grupo etários. Eis por que um espectáculo teatral para a infância nunca está acabado, nem mesmo quando se retira de cena. O que Meyerhold dizia para o teatro em geral, isto é, que a peça só começava verdadeiramente após a estreia, assume relevância particular no teatro para a infância. Assim, nenhuma cenografia, sonoplastia ou luminotecnia e, consequentemente, nenhuma encenação se podem considerar definitivas no teatro para a infância, mas terão de ser concebidas como algo susceptível de contínua mutação, adaptação e transformação. Objectos e pessoas (os actores) deverão possuir maleabilidade e grande dose de disponibilidade para esta verdadeira dialéctica do conhecimento e da acção teatrais.
O ritmo, as imagens, a cor, a coreografia, tudo produz estímulos e são eles que desencadeiam as reacções. Ora, se a criança é um ser em formação, se o teatro é um instrumento privilegiado no processo do conhecimento e tem necessariamente preocupações formativas, então deverá rejeitar todo e qualquer estatismo susceptível de fazer parar esse movimento do contacto com o conhecimento, feito aqui pela via da arte.
Posto isto, defenderemos então uma vez mais a utilidade do teatro de amadores como aquele que mais capaz se apresenta para oferecer um teatro despojado, não artificioso, um teatro que viva essencialmente do conteúdo, em suma, um teatro simples, assente quase totalmente no processo de comunicação recíproca entre os adultos-actores e as crianças-espectadoras. Com isto estamos bem longe de pensar num teatro pobre, num teatrinho miserável. Só que, pelas suas exíguas possibilidades, conjugadas com a permanente prática da itinerância, o teatro de amadores terá de suprir, pelas capacidades comunicativa e criativa, pelo recurso à imaginação, pela arte, em suma, os artifícios técnicos de que em regra se servem, e muitas vezes mal, os grupos profissionais.
Uma criança não deixa de navegar ou de andar de bicicleta só porque não possui um barco ou um velocípede e colmata a lacuna construindo-os, em madeira, em papel ou em arame, quantas vezes limitando-se apenas a cerrar os olhos. E é nesses instantes de criação que ela é mais feliz.
IV - A POLÍTICA DOS ADULTOS
Há, de facto, muita intencionalidade nos erros crassos que se observam na política. As crianças não votam, logo são "cidadãozinhos". Por isso mesmo deparamos com os políticos mais empenhados nos subsídios e apoios aos espectáculos musicais e futeboleiros, para adolescentes e adultos, enquanto esquecem os grupos vocacionados para a infância, com os primeiros auferindo ganhos avultados, além da bilheteira.
É justo reconhecer que os grupos profissionais vocacionados para a infância são ainda aqueles que promovem uma itinerância significativa. Mas neste escalão, profissionais como amadores permanecem como parentes pobres da política para o teatro, situação que se agrava ainda mais pelo facto de em regra não auferirem proventos de bilheteira e, mesmo quando vendem bilhetes, os resultados são tão insignificantes que não chegam a alterar a situação. Por isso se percebe o porquê de haver tão poucos grupos profissionais a dedicarem-se ao teatro para a infância: é que mesmo os amantes do teatro se cansam de o amar de forma masoquista.
Infelizmente a história do rebuçado funciona ainda, e muitos se convencem que qualquer coisita serve para adoçar a boca dos miúdos. À força de quererem ser senhores muito importantes e sisudos, esqueceram-se já dos maravilhosos tempos em que foram crianças, ignorando o quanto importa preparar o futuro, mesmo que isso não se traduza imediatamente no encher as urnas de votos.
V - CONCLUSÃO
Temos plena consciência da abordagem demasiado superficial que fizemos às questões enunciadas e por certo outras haverá bem mais importantes. Algumas serão certamente afloradas em próximas oportunidades. Mas é tão vasto, tão complexo e tão rico o tema que dificilmente o esgotaremos. Fica, porém, a intenção de questionar, mesmo brevemente, alguns dos mais palpitantes problemas com que se debate o teatro para a infância, restando sobretudo a certeza de um debate que valerá sempre a pe­na.
Pela nossa parte coexistem neste momento duas estranhas sensações: a satisfação de ter levantado algumas questões, infelizmente tão arredadas das nossas tertúlias culturais, erguendo mais uma voz no coro das lamentações legítimas de quantos vivem o teatro por dentro; e, por outro lado, a mágoa de termos ficado ainda muito aquém dos propósitos de abordagem, tantos são os problemas que gostaríamos de aflorar.
A representação teatral é de facto a arte do efémero, um efémero sui generis que, no dizer de Derrida, " não deixa atrás de si, atrás da sua actualidade, nenhuma marca, nenhum objecto que se possa guardar. Não é nem um livro, nem uma obra, mas uma energia, e neste sentido é a única arte da vida ". [ DERRIDA, J.- L'Écriture et la Différence, Paris, Seuil, 1967, p.363 ].
Por tudo isto, fazer teatro para crianças é potenciar-lhes a Vida.



Fernando Peixoto

3 comentários:

Isamar disse...

Uma abordagem que , sendo superficial, como dizes, é facilmente compreendida por quem a lê. Apesar de longo, o post é tão interessante que lê-lo de uma vez não foi, de modo algum, uma tarefa difícil. Quanto ao teatro, profissional e amador, gosto de ambos. Imcomparáveis, quanto a destinadores e destinatários,são ambos muito importantes pelo que a sua coexistência é necessária e salutar.

Beijinhossss

São disse...

POrque estou ligada à Educação, agradeço muito o tema.
Foi interessante ler o post, Como sempre.
Feliz semana, amigo.

Anónimo disse...

Caro Fernando:
É sempre um prazer reflectir contigo. Obrigado por mais esta "lição".
Vou alertar os meus "correspondentes".
Abraço,
Rui Vaz Pinto