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sexta-feira, abril 18, 2008

Reflexões sobre o Teatro Associativo

REALIDADES DO TEATRO ASSOCIATIVO



(Excerto da Intervenção proferida no encerramento do Festival de Teatro de Amadores de Gaia em

Março de 2006)

I - Rememorando
Não quero pronunciar-me aqui sobre nenhum grupo em particular, mas prefiro abordar um pouco da essência e dos arquétipos que caracterizam o Teatro de Amadores.
Felizmente ainda há múltiplas colectividades que teimam, estoicamente, manter viva uma arte que sempre se considerou em crise.
Por isso, não faltam as aves agoirentas e os profetas dissimulados que passam o seu tempo a tocar nas trompas da desgraça, anunciando a MORTE DO TEATRO. Diga-se de passagem que não estão sozinhos. Muitos outros, gente dita «respeitável», não só pelas gravatas que exibe, pelos carros em que se desloca, pelas vezes em que aparece nos jornais ou na TV, as conhecidas toupeiras dos sinusoidais corredores do poder, contribuem de forma acelerada para
tentar minar a solidez do esforço que conduz à Arte Teatral.
Mas há também esses, os que ainda acreditam na imensa força cultural do Teatro e por isso a ele se entregam de corpo e alma, esquecendo chuvas e cansaços, relegando lareiras e confortos, cerrando os dentes de coragem e caminhando pelos difíceis e acidentados caminhos de Téspis, entrando sem medo na caverna de Eurípides, percorrendo corajosamente as ruas de Roma, dando o braço do humor corrosivo a Plauto, espreitando o Paço para rir de frades e alcoviteiras, embarcando nas Barcas de Mestre Gil, mesmo que alguma delas os transportem ao Inferno, ora sentindo-se «Todo-o-Mundo», ora assumindo a consciência clara de «Ninguém», mais adiante percorrendo as ruas londrinas da imundície e da promiscuidade, para usufruir de um Sonho de Uma Noite de Verão, enfrentando tempestades shakespearianas, atravessando o canal e desembarcando no Palácio da Borgonha para rir do Avarento, do Misantropo, do Médico à Força, e assistir, de lágrimas nos olhos, ao Doente Imaginário que morre em pleno palco.

São estes que mais tarde experimentarão novas estéticas, desde o romantismo de Vítor Hugo ao naturalismo de Ibsen, do absurdo de Beckett à revolta incontida e corajosa de um Harold Pinter.
Em todo este percurso, sempre foram assistindo à morte anunciada do Teatro, desde o cristianismo primitivo aos ambulantes das carroças medievais, dos mimos da Commedia dell’Arte à Comédie Française, de Lope de Vega a António José da Silva, de Strindberg a Lorca, experimentaram diversificadas propostas bebidas um pouco ao sabor da experiência colhida em Brecht, Piscator, Pirandello, Artaud, Grotowsky, Boal, Jaime Salazar Sampaio ou Bernardo Santareno e tantos outros que lançavam ao Teatro desafios para um renascimento contínuo.

A «anquilose teatral» não se consumou e o Teatro soube sempre ressurgir com novas forças, retemperadas ora pela supermarioneta de um Gordon Craig, ora pela técnica ainda hoje obrigatória de um Stanislavsky, fontes em que beberiam mais tarde - e avidamente - os grandes e modelares actores americanos (como Marlon Brando ou Paul Newman, James Dean ou Roberto de Niro), formados nesse “ABC” do Actor’s Studio e que os amadores acabariam por assimilar através do cinema, no Cine-Teatro de Gaia ou no Estrela-Cine de Coimbrões, no Odeon ou no Batalha. E complementando o que viam no cinema, escutavam depois nos pequenos salões das colectividades as palavras de ensaiadores e encenadores, muitas vezes fruto de um saber de experiência feito.

2 - A realidade portuguesa
Entretanto, no Portugal do século XX viviam-se duas realidades perfeitamente distintas: de um lado a revista, com todo o cortejo de críticas a um regime ferozmente censório, pontilhando as piadas com metáforas e alegorias na tentativa - nem sempre alcançada - de enganar os tão estúpidos como vigilantes «coronéis do lápis azul»; do outro, um teatro nacional, parido nas entranhas do regime, cuidadosamente evitando criações que duplicassem as fogueiras onde já haviam padecido, duzentos anos antes, génios como o Judeu e obrigando a que autores como Rebello ou Santareno, implacavelmente perseguidos pela Censura, redigissem ― nos finais da década de setenta ― pungentes despedidas do teatro que, felizmente, Abril veio impedir.
Estávamos, então, num país sem televisão, sem PC’s nem DVD’s, sem salas de cinema com pipocas.
«Era uma vez um País
onde entre o mar e a guerra
vivia o mais infeliz
dos povos à beira-terra»

como escreveu o poeta. Era, pois, no seio das colectividades, entre homens e mulheres que à noite se encontravam e conviviam, após a fadiga de penosas jornadas de trabalho, que sobrevivia um teatro humilde e carente de meios técnicos, culturais e humanos. Assim se fazia (ou ia fazendo) o Teatro nas colectividades, com actores que muitas vezes nem sabiam ler, uns com ensaiadores, outros com encenadores, uns e outros verdadeiros motores dos espectáculos, com cenários concebidos na fértil imaginação dos criativos artistas sem escola, tantas vezes com figurinos anacrónicos e completamente desajustados, iluminados por latas com lâmpadas e sonoplastia suportada por efeitos em chapas, vozes, assobios, areia escorrendo e tantas outras soluções verdadeiramente insólitas mas sempre imaginativas.
A própria produção literária dramática raramente chegava ao público leitor sem que a censura extirpasse tudo quanto, no seu entender inquisitorial, pusesse em causa os valores do modus vivendi do regime.
Mesmo assim, eram os amadores a verdadeira Fénix do Teatro.
Por volta dos anos cinquenta, alguns dramaturgos portugueses ensaiam novas estéticas: estamos a lembrar-nos, entre outros, de Luís Francisco Rebello e das suas experiências no Teatro do Salitre, por exemplo, em breve seguido por muitos outros. No Porto explode a «bomba» de um novo teatro, despoletada pelo grande António Pedro no TEP, em breve tornado fábrica de grandes actores, muitos deles oriundos das fornadas locais das colectividades. Uma nova escola de estéticas e de actores e técnicos veio, deste modo, contribuir decisivamente para a renovação de muitos dos grupos de amadores. E se os concursos do SNI tiveram o senão da competição artística que culminou, em muitos casos, no endividamento dos grupos e até em disputas de chauvinismos regionais ou locais que prejudicavam o movimento teatral, sem dúvida permitiu também uma renovação importante nos gostos e nas opções dos que tinham o Teatro como paixão complementar do seu labor profissional.
É certo que nem todos os grupos acompanharam uma renovação que seria de esperar e... desejar. Mas teriam sido eles os únicos culpados?


É sabido que a televisão, como serviço público que é ― por enquanto ― tem por obrigação fomentar o gosto pela arte, de que o Teatro constitui parte integrante. Mas é inegável que HOJE a Televisão não tem nenhum programa de teatro nem exibe regularmente as peças que possui em arquivo. É também inegável que a comunicação social se mantém alheada do fenómeno teatral amador ou associativo e às vezes até parece que quando sai alguma notícia, tal aconteceu por engano. Os críticos estão todos inscritos no Fundo do Desemprego, mas sobram as revistas côr-de-rosa do «jet oito», empenhadíssimas em informar-nos sobre o volume de silicone de Fulana, da «facada matrimonial» do senhor X, da beleza do corte do vestido das «Lilis» e de festas e banquetes onde se gasta mais dinheiro que na montagem de qualquer peça de teatro.

MAS O TEATRO TEIMA EM RESPIRAR!
3 - A realidade do teatro associativo
Um pouco por toda a área do Grande Porto há (ainda) vários grupos a montarem espectáculos teatrais com alguma regularidade. Naturalmente, há espectáculos melhores e outros de menor qualidade.
Importa, porém, perceber as razões por que a qualidade é, por vezes, tão diferente entre os grupos ou mesmo tão diversa entre as várias produções dum mesmo grupo.
A primeira razão, quanto a nós, tem a ver com a preparação dos próprios encenadores, técnicos e actores. Sabemos que há grupos que dispendem somas importantes para dotar os seus grupos de competentes encenadores, cenógrafos e (ou) figurinistas, técnicos diversos. Mas há outros ― a maioria ― que não podem dar-se a essas ousadias.
Além disso, há ainda encenadores que, depois de estreadas as peças, partem para outros grupos, abandonando o trabalho de formação (que deviam ter) desenvolvido, ignorando a lição basilar de que o verdadeiro espectáculo teatral começa após a estreia. Isto significa que, após algumas representações, os espectáculos pouco têm já a ver com o projecto de criação inicial, acabando numa mescla de «inovações e de improvisações» de duvidoso mau gosto. Muitos dos pormenores, do cenário aos figurinos, da luz à caracterização, tudo cai num facilitismo que descaracteriza e compromete um trabalho que demorou meses a erguer. É evidente que não defendemos a obrigatoriedade de o encenador acompanhar todos os ensaios que terão de fazer-se posteriormente à estreia. Mas não deve abandoná-los pura e simplesmente. Além dele, para os ensaios de rotina, é imprescindível a existência dessa figura tão importante como esquecida (nalguns meios) do ensaiador, aquele a quem compete a grande tarefa de manter inviolável a integridade do projecto da encenação.

Assim, deixa de haver continuidade de projectos e de escolas que poderiam e deveriam consolidar a formação teatral das associações.
Surgem novos encenadores, novos cenógrafos, novos técnicos de luz e de som, por vezes mesmo novos actores. É um novo trabalho, no fundo, que não raro faz tábua rasa da preparação e dos ensinamentos anteriores.
Perde-se, deste modo, o carácter propedêutico, o sentido de «escola» que deve permanecer subjacente a qualquer grupo. E não é possível fazer escola sem um projecto que se prolongue, no mínimo, por algum tempo.
Ora, é precisamente aqui que «a porca torce o rabo». Efectivamente, sem um projecto teatral e meios financeiros que permitam sustentar um programa de acção com continuidade, qualquer grupo tende a montar espectáculos de diferenciada qualidade, não adquirindo mais valias culturais e artísticas, nem formando quadros que no futuro possam garantir a própria autosuficiência dos grupos.
Não se pense, contudo, que culpamos disto as colectividades. As autarquias e sobretudo o Estado têm, também neste aspecto, uma particular responsabilidade. É que não chega atribuir-se subsídios pontuais, mas deveriam promover-se regularmente encontros para, através do intercâmbio, se colherem experiências alheias, tão úteis ao desenvolvimento. E, mais que subsídios, proporcionar condições de apoio logístico aos grupos (publicidade, transportes, etc.) para que estes possam dar-se a conhecer dentro e fora das suas regiões. Mas sobretudo, investir na contratação de técnicos que, durante um ou dois anos, trabalhem nas colectividades para, com a sua experiência e saber, contribuirem para o desenvolvimento cultural e artístico dessas associações.
E, finalmente, que os planos curriculares dos estudantes contemplem, de facto, as disciplinas de expressão artística, «semeando» o gosto pelo teatro nas camadas jovens, das quais sairão, por certo, aqueles que poderão insuflar nova vida cultural ao movimento associativo.
Esta deveria ser a política do País para o movimento associativo em geral, implicando ― obviamente ― as autarquias locais que, neste aspecto, têm particulares responsabilidades.

Uma nota final para uma conclusão cínica:
Sabiam que o Teatro é irmão do Político e quase nunca estão de boas relações? Porque, filhos ambos do mesmo Pai (o Homem) e da mesma Mãe (a Natureza Humana), ambos intervêm no quotidiano e os seus objectivos entram frequentemente em conflito.
O Político sabe perfeitamente do grande amor que o Teatro tem pela Liberdade e como quer, casado com ela, despertar os homens e o mundo. O Político materializa a ancestral vingança de Zeus contra Prometeu: o Político, embebido nas teias eróticas da Ambição, busca uma relação promíscua e de conveniência que lhe permita decidir, juntamente com a sedutora, da vida e do destino dos humanos, sem ser perturbado pelo fogo do conhecimento que o Teatro pode levar às massas.
Ao longo dos séculos temos assistido a sistemáticas tentativas de fratricídio, com o Político (vestindo trajos de tirano ou de religioso ― mais recentemente usa fatos de bom corte e gravatas italianas) a tentar amordaçar ou mesmo apunhalar o irmão Teatro. Primeiro, na Grécia, onde se tentou calar os dramaturgos; assim foi em Roma, porque Nero não logrou ser o actor de fama que ambicionava; assim foi, durante séculos, nos primórdios do cristianismo. Mas, viajando de carroça ao longo dos tempos, mais tarde entrando de carruagem nos palácios dos mecenas e dos próprios reis, hoje viajando de carro, de comboio ou de avião, tendo já um lugar cativo na própria NET, o Teatro sobreviveu sempre.
Crucificado e recrucificado, o Teatro soube sempre reerguer-se do túmulo onde o Político pretendeu sepultá-lo e de cada vez partiu com uma nova mensagem, com um novo sorriso, com uma nova vontade, com uma nova esperança, com um novo sonho, com um novo projecto de Futuro.
Num palco convencional ou numa barraca improvisada, na arena de uma praça ou no espaço estreito de uma rua, no interior de um supermercado ou num recanto de um qualquer centro comercial, o Teatro acontece, pode acontecer, e em todas essas ocasiões é o Homem, o Homem autêntico que se procura a si mesmo para construir o seu próprio itinerário, para criar o seu próprio Futuro. Aí reside a sua força. Aí habita a verdadeira Fé que só os crentes da religião teatral cultivam: um Amanhã diferente com um Homem diferente. Porque, como escreveu Elsa Triolet, «o futuro não é uma melhoria do presente. É outra coisa».
Recordemos o que escreveu Federico García Lorca:
«un pueblo que no ayuda y no fomenta su teatro, si no está muerto, está moribundo». — Rompamos o silêncio! Apedrejemos a ignorância! Expulsemos o oportunismo! Matemos a morte! Façamos Teatro!

Fernando Peixoto

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