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terça-feira, novembro 06, 2007

O CARNAVAL TEM UM REI

NOTA - Vale a pena ler este texto do brasileiro Augusto Boal, dramaturgo e grande encenador e teórico do teatro

Por Augusto Boal
Texto publicado na Revista Teatro/CELCIT. Nº 32

O Carnaval tem um Rei: o Rei Momo. A obesidade é uma doença, mas muitos gordos sonham em ser o Rei dos Doentes.
Francisco Alves foi o Rei da Voz, o futebol tem rei e, na Itália, até imperador, porque Adriano era o nome de um tirano que virou centro-avante. Existem Reis das Quadras, Rei do Rinque, Rei das Pistas.
Rei por toda parte: no Rio, um restaurante se chama Rei do Bacalhau; outro, O Bacalhau do Rei. Na Noruega, um dia jantei em um restaurante que se chamava Rei do Bacalhau em Soda Cáustica, que é uma forma local de se preparar esse peixe, enterrado uma semana em soda cáustica antes da frigideira – e depois de bem lavado, é claro. Delicioso.
No campo, o Rei da Soja; na cidade, o Rei na Noite.
Só fica faltando o Rei da Morte, mas em Porto Rico eu vi um anúncio na beira da estrada que jurava: “Para o seu defunto bem amado, melhor que o nosso cemitério, só mesmo um lugar no Paraíso, ao lado do Cristo Rei”.
Rainhas também proliferam: Rainha dos Baixinhos, Rainha da Uva, Rainhas de Beleza. Sem esquecer que a minha mãe era a Rainha do Lar.
Por que essa obsessão pelos títulos de nobreza? Em parte, ela reflete o desejo de sermos excelentes, superar barreiras, mostrar que somos capazes de muito mais: somos reis.
Quase sempre, porém, essa é uma forma agressiva de menosprezar os plebeus como nós, turba ignara, que só servimos para vassalos e para a produção de aplausos... ou para o lixo.
A Monarquia necessita de insígnias: a Coroa, além de mostrar que o rei é Rei, mostra que nós somos cabeças descoroadas. Coroar um rei significa roubar a coroa da nossa cabeça nua.
As Monarquias, por assim dizer, laicas, também existem no seio da República: na moda, no esporte, na economia e, sobretudo, nas Artes.
As Monarquias econômicas se sustentam no poder do dinheiro, e suas insígnias são os automóveis luxuosos, mansões com muros eletrificados, seguranças armados.
A Monarquia Artística se sustenta na Mídia que determina quem é Artista e quem não: só é Artista quem aparece na televisão e nas colunas sociais, que são as suas insígnias.
A Mídia faz supor que ser Artista é dom divino, coisa de elite, que só a própria Mídia tem a faculdade de descobrir e... vender. A Monarquia Artística faz parte da Economia do Mercado.
Arte, no entanto, é a própria condição humana — ser artista é ser humano. É a forma pela qual as crianças aprendem a viver em sociedade. Fazendo Arte: teatro, música, dança, pintura...
Fazendo teatro, as crianças compreendem as relações sociais entre pai e mãe, médico e doente, primo e irmão, polícia e ladrão... Improvisam cenas dentro do mais puro estilo de Stanislawky, cheias de emoção e memórias emotivas.
Não só teatro: toda criança é arquiteta e brinca na areia, construindo casas. Toda criança é artista plástica e, se lhe dão lápis de cor e papel, pinta. Se lhe dão massa 37
de modelagem, esculpe. Quando ouve música, até o bebê baila e ri feliz. É assim que se aprende a viver, bailando, porque somos todos bailarinos, artistas plásticos, cantores e atores, desde criancinhas.
Aprende-se a sorrir pela Arte: quando acerta, a criança ri o riso de felicidade; quando erra, o riso de quem descobre o erro. A criança que não ri até os três anos de idade, jamais conhecerá os prazeres da alegria, e viverá para sempre em preto e branco, sem as cores da felicidade.
O ser humano, porém, como qualquer animal, necessita de território para viver, mover-se, reproduzir-se. Poucos, porém, aprendem Solidariedade, a mais fácil das disciplinas.
Os predadores avassalam suas vítimas. A cada momento, inventam novo nome para designar a mesma predação: colonialismo, imperialismo e, agora, globalização. O Mercado, que é sujeito e mentor da globalização, invade a intimidade de nossas casas, na TV e nos jornais, na Internet e no telefone, para nos obrigar a comprar e recomprar os seus produtos.
O Mercado cria a moda e os padrões de Arte. Nega a verdadeira Arte, pois que Arte é a diversidade e não a reprodução ad infinitum da mesma idéia ou coisa.
O Mercado quer que compremos a mesma marca de tênis e o mesmo rosto de ator, a mesma lavadora de roupa usada pela atriz da telenovela, ou pela sua criada negra.
A globalização não quer globalizar a fraternidade, a medicina preventiva, a luta contra a fome. Quer criar Mercado e, por isso e para isso, não cria a mercadoria que vai satisfazer as necessidades do consumidor: cria os consumidores que vão satisfazer as necessidades do Mercado.
O Mercado quer destruir a Arte que nasce no coração de cada um de nós, e substituí-la pelo simulacro de arte exposto e proposto pela mídia, onde o nosso lugar é no auditório que aplaude sob comando, e ri quando mandado.
Para lutarmos contra a globalização temos que desenvolver, em cada um de nós, o artista que vive dentro de nós, e que foi amordaçado quando nos obrigaram à condição de apenas espectadores.
Para isso, os Pontos de Cultura1 são essenciais ao Brasil que se transforma — hoje, mais do que nunca —, porque eles permitem e estimulam o desenvolvimento artístico e intelectual de todos, e não apenas de alguns eleitos.
Os Pontos de Cultura são o exemplo máximo de Democracia, pois apóiam os núcleos que já existiam com seus próprios seus projetos, sem impor censuras ou limites.
Nos Pontos de Cultura, a Arte é essencial, até mesmo por uma razão científica, neurológica: porque existem Linguagens Informativas e Linguagens Cognitivas. Para a mais completa compreensão do mundo, temos que nos valer de todas.
Quero que fique claro: qualquer linguagem tem, como função essencial, transportar informações — fatos, idéias, emoções, sons, cores e formas. Toda linguagem é, portanto, Informativa. Outras, além das Informações e Conhecimentos que transportam, são, em si mesmas, Conhecimento.
Nas Linguagens Cognitivas, o Conhecimento é a própria Linguagem. A música, a fotografia, a dança, a escultura, a pintura, todas as Artes são Linguagens Cognitivas — pois Conhecimento não se reduz apenas àquele que pode ser verbalizado com palavras, mas inclui aqueles que são compreendidos pelas sensações e emoções.

Dou um exemplo: a partitura de uma canção está escrita em uma Linguagem Informativa que pode ser lida por todos que a conhecem; ela transporta informações sobre sons, tempos e claves. Ao executar essa partitura, ao realizar essas claves, tempos e sons, o pianista os traduz pela sua sensibilidade de artista e cria a canção que ouvimos e ressoa — esta é Linguagem Cognitiva. Na partitura, a canção é apenas informação; executada, sonora, é Conhecimento. Os significantes da partitura se traduzem nos significados da Arte do pianista.
Um quadro é Conhecimento, mesmo que nada se explique a seu respeito — basta que o espectador o sinta, perceba e frua. O histórico do quadro pode nos trazer Conhecimentos adicionais, modificando a percepção que dele fazemos. Ele, em si, no entanto, já era Conhecimento.
Se nos dizem que a modelo da Mona Lisa era uma distante e bela dama, ou frágil rapazinho enamorado do pintor, isto pode nos oferecer novos ângulos de observação e fruição desse quadro, provocando, em nós, novas reações e sentimentos. O quadro, porém, já nos havia proporcionado Conhecimento, isto é, já se havia integrado dentro de uma estrutura ampla de valores, idéias, emoções e razões que já possuíamos anteriormente em nossa memória ativa, consciente ou não.
A Informação, para se transformar em Conhecimento, deve ser associada a outras informações e valores que já possuímos e que lhe darão sentido e valor em um quadro moral e ético.
Conhecimento é a Informação estruturada que permite a tomada de decisões éticas, pois a ética é uma invenção humana que nos afasta dos instintos animais.
As informações do mundo exterior nos chegam pelos sentidos através do córtex cerebral, mas o que temos guardado no subsolo do nosso cérebro (paleomamífero), fruto de anteriores informações recebidas, vai influenciar nossas novas percepções, ao recebê-las. Se o nosso cérebro está inundado pelo lixo informativo, distorções e falsidades que nos jogam em cima os meios de comunicação e a publicidade, estas irão deformar o nosso precário entendimento.
Os Pontos de Cultura não se devem limitar a produzir a arte pela arte, mas devem situá-la dentro do nosso contexto histórico — os Pontos de Cultura são brasileiros e não correias de transmissão de ritmos, formas e idéias importadas, sem reflexão. Criemos a nossa arte, seja qual for, mas nossa!
Claro que podemos — e devemos! —, dialogar com outras formas culturais e com as artes estrangeiras. Diálogo e não imitação: isso deve ser feito antropofagicamente, como diria Oswald de Andrade. Devemos ser eruditos, pois erudição é o conhecimento das culturas alheias, mas, sobretudo, devemos ser cultos, criando a nossa!
A minha grande admiração pelo Projeto dos Pontos de Cultura vem do fato de que não nos obriga a nada, mas nos permite tudo: nesta confrontação de idéias, neste cotejo de tendências — que é o contrário da globalização! — eu tenho plena confiança na inteligência humana: creio em nós.
Nós aprenderemos a ser nós mesmos, e não aquilo que nos ordena a Mídia.
Seremos livres para criar: seremos artistas!


1 El gobierno de Lula, mediante el programa Cultura Viva, implementó el proyecto Pontos de Cultura (puentes de cultura): subvenciones a comunidades humildes otorgadas por concurso a los me­jores proyectos educativos comunitarios. En 2005 varios cientos de estos “puentes” funcionaban en la ciudad de Sao Paolo. (Nota de la Ed.)

4 comentários:

Anónimo disse...

Gosto muito desse Blog, discute os temas com imparcialidade e mostra a importância real da arte e do teatro na vida humana sem maquiar as verdades.
Gostei de saber que desde 2005 vários “pontos” de cultura comunitária funcionam em São Paulo. Isso precisa ser divulgado.
O artigo é excelente. Chama atenção aos Pontos de Cultura do governo brasileiro, do Presidente Lula, essenciais ao país que se transforma — hoje, mais do que nunca —, porque eles permitem e estimulam o desenvolvimento artístico e intelectual de todos, e não apenas de alguns eleitos.
Enfoca a aversão da mídia a esse tipo de projeto porque “ela quer vender”.
Mostra que a arte integra a condição humana. Desde criança o ser humano aprende a viver, a sorrir e a se colocar no mundo pela arte.
Uma maravilha de artigo!!!!! Parabéns!

Anónimo disse...

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Branca disse...

Por várias razões só hoje me foi permitido ler este texto de Augusto Boal, com a atenção merecida, embora já tivesse lido algumas passagens antes.
Extraordinária reflexão sobre o mundo global, a normalização, o consumismo, mesmo na área artística.O mercantilismo da cultura nunca foi tão agressivo como nos nossos dias, é um problema que não é só do Brasil.A vulgarização, a importação de modelos,a imposição e venda por parte dos média, como diz este artigo está na ordem do dia.No entanto devemos acreditar que, como sempre aconteceu será a partir da cultura e de iniciativas que a levam a todos os sectores sociais, como as que aqui são referidas, que o mundo avançará.A arte sempre foi o mote para a inovação e o verdadeiro progresso, para a revolução dos sistemas políticos e sociais, independente deles e sempre à frente deles, ela é a invenção do novo..., do diferente...e por isso muitos têm medo dela.
Obrigada Fernando por nos trazer aqui textos tão interessantes, que nos abanam e nos remetem para situações que mesmo que conheçamos vivem às vezes um pouco adormecidas nas nossas correrias diárias.
Um abraço.

De Amor e de Terra disse...

Faço minha a definição da postante anterior...

Extraordinária reflexão!

Gostei muitíssimo; não conhecia o Autor; obrigada Fernando por mo dar a conhecer!


Bj


Maria Mamede