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quinta-feira, fevereiro 16, 2006

O TEATRO NO BRASIL: de Anchieta a Manuel Botelho de Oliveira



A Companhia de Jesus é fundada por Inácio de Loyola em 1534. O seu principal objectivo é o de estender a fé cristã entre os povos do mundo a que as naus portuguesas e espanholas iam aportando. Além disso, em Portugal e Espanha procuravam controlar os estabelecimentos de ensino na mira de formarem quadros devidamente preparados para as tarefas da missionação.
O classicismo impusera múltiplos ditames culturais e estéticos e a sua influência é tão saliente que a produção literária e científica europeia faz-se maioritariamente em latim. O teatro, sobretudo entre as elites, adopta igualmente esta língua, como acontece em Portugal, quando o Colégio das Artes, em Coimbra, cai sob a alçada dos Jesuítas. Difunde-se a tragédia latina nos colégios sob o seu domínio em Évora, Coimbra, Santarém, Lisboa, Braga e Bragança, tanto mais que a Ratio Studiorum impunha aos alunos que falassem entre si e com os mestres sempre na língua de Virgílio, a mesma em que se representavam as tragédias e que servia como veículo de comunicação nas aulas entre professores e alunos.
A tragédia e a tragicomédia religiosa neolatinas assumem por vezes proporções de grande qualidade estética e literária, como o revela Claude-Henri Frèches a propósito da obra do padre jesuíta Luís da Cruz, que, entre outras, escreveu as tragicomédias Prodigus, Vita Humana, Sedecias, Manasses Restitutas, etc., e que é considerado por alguns estudiosos como um dos dramaturgos portugueses que melhor dominou a produção dramática em Latim.
A expansão comercial e de conquista, rumando aos portos do Oriente ou da América do Sul, transportava simultaneamente a espada e a cruz. Guerreiros, comerciantes e Jesuítas formavam o trio que partia à conquista de novos territórios, de novos mercados, mas também na busca incansável da conversão das almas para a fé cristã.
Grandes cultores do teatro, de resto recomendado pelo próprio Loyola nos seus Exercícios Espirituais, os Jesuítas foram os principais responsáveis pela sua difusão nas longínquas paragens onde aportavam as naus quinhentistas. Levaram-no com eles na Expansão, representaram-no nos mais recônditos lugares do mundo onde chegaram, nos séculos XVI e XVII, do Japão ao Brasil. E se nem sempre se preocupavam com o facto de os indígenas não perceberem a língua, o certo é que o rigor das encenações, a exuberância dos figurinos, a espectacularidade dos cenários, logravam, mesmo assim, tornar compreensíveis as mensagens que pretendiam fazer passar: tratava-se de temas religiosos tornados acessíveis através dos diversos recursos que utilizavam na forma espectacular como se apresentavam. Assim se percebe que orientais e ameríndios ficassem fascinados com as suas representações, mesmo quando não percebiam o que diziam.
Quinze anos após a sua criação, desembarcam no Brasil os primeiros jesuítas chefiados pelo padre Manuel da Nóbrega. Vinham incumbidos pelo monarca D. João III de congregarem as populações autóctones em aldeamentos, uma forma de os fixar num dado território e assim poderem exercer sobre eles um acompanhamento mais próximo que permitisse a sua catequização.
A terceira equipa de missionários jesuítas chegou ao Brasil em 1553. Integrava-a um jovem espanhol, de 19 anos de idade, chamado José de Anchieta, que entrara aos 14 para o Colégio das Artes, em Coimbra, onde por certo terá assistido a representações de peças vicentinas, como se deduz das influências que demonstram as suas produções dramáticas.
O jovem Anchieta possuía já uma sólida formação cultural que aproveitava para verter nos seus trabalhos poéticos e epistolográficos, na sua sermonária e nos seus textos dramáticos.
Instalado no que mais tarde viria a ser S. Paulo, Anchieta bem cedo percebeu que pela via da representação teatral poderia muito mais facilmente atingir os seus objectivos de catequização, não se limitando aos povos indígenas, mas estendendo-a igualmente àqueles que por qualquer razão, incluindo o degredo, se encontravam na colónia. E deitou mãos à tarefa de redigir autos e outros textos dramáticos, utilizando uma mescla linguística de latim, português, castelhano e dialecto local que aprendera com o intuito de poder chegar mais perto e com maior eficácia à evangelização das populações autóctones.
As suas produções dramáticas beberam na tradição aprendida na Península Ibérica com os mistérios medievais, as moralidades, as representações das vidas de santos, como ponto de partida para fornecer os exemplos de conduta que permitiriam conduzir ao fortalecimento da fé e à salvação.
As efemérides religiosas, as chegadas de relíquias e as procissões que se organizavam constituíam o pretexto para as representações que chegavam mesmo a integrar actores índios no elenco, com os adultos interpretando líderes locais que se opunham à ocupação e as crianças encarnando personagens angélicas, tudo servido por uma profusão de efeitos cénicos verdadeiramente exuberantes, deslumbrando os olhos extasiados dos ingénuos espectadores.
As representações dos autos decorriam em regra nas aldeias indígenas e a elas assistiam tanto os índios já convertidos como aqueles que estavam ainda por evangelizar. Era sobretudo aqui que se recorria aos textos que integravam os dialectos. Havia ainda outras representações, destinadas ao público em geral e que se realizavam nas praças das cidades. Por vezes desenvolviam-se mesmo ao longo de um determinado percurso por onde se estendia o cortejo que transportava as imagens ou as relíquias sagradas.
Os textos, sob a forma de Autos, misturavam episódios cómicos e trágicos, conforme a intenção da mensagem que se pretendia transmitir e tanto utilizava personagens alegóricas (a «Vila» ou o «Governo», por exemplo), como figuras simbólicas (a «Ingratidão», o «Mundo») ou mesmo personagens históricas e sagradas.
Crê-se que a primeira obra de José de Anchieta terá sido representada pelo Natal de 1561 e era denominada Auto da Pregação Universal. O título advinha precisamente do facto de ser escrita em português, castelhano e tupi, incluindo a variante tupinambá.
Apesar da sua intensa actividade missionária e do empenhamento como medianeiro no conflito que opunha os Portugueses aos invasores franceses e aos índios tamoios seus aliados (Anchieta chegou mesmo a estar refém destes índios), a sua produção literária não pára e compõe de memória Da Bem Aventurada Virgem Maria, em 1563, um poema que só mais tarde viria a passar a escrito. Nesse mesmo ano é publicada, em Coimbra, a obra em latim intitulada Gestis Mendi de Saa. O seu labor não conhece paragens e o seu estudo não cessa. Estuda teologia e em 1567 é finalmente ordenado sacerdote.
Em 1577, representa-se em S. Vicente o seu Auto de Santa Úrsula. Logo no ano seguinte é nomeado superior dos jesuítas e nessa qualidade inicia uma verdadeira peregrinação pela costa brasileira, acompanhando a actividade das missões religiosas e fundando povoações como Guaraparim, Reis Magos ou Reritiba, entre outras.
À medida que se ia deslocando, ia escrevendo e organizando as suas representações nessas localidades. Mas é sobretudo quando se vê liberto da responsabilidade de superior provincial que a sua produção dramática conhece um maior impulso.
Dedica-se igualmente ao labor histórico, consumado em 1584 através da Informação do Brasil e de suas Capitanias.
No ano de 1587, no adro da capela de S. Lourenço, actual cidade de Niterói, representa-se o seu Auto de S. Lourenço, em homenagem ao santo martirizado pelos Romanos. O auto, em cinco actos, pretende homenagear o padroeiro local, mas vai mais longe. No primeiro acto descreve o martírio do santo às mãos dos Romanos. Mas no acto seguinte a intenção é já a de denunciar as maldades praticadas por demónios que visam destruir a aldeia, intento que irá ser contrariado pelos esforços conjuntos de S. Lourenço, de S. Sebastião e do Anjo da Guarda. E não é por mero acaso que os nomes dos demónios são precisamente os de chefes índios pertencentes à Confederação dos Tamoios, aliados dos Franceses e mortos no decurso das lutas que os Portugueses travaram para suster as tentativas francesas de ocupação, na década de sessenta. A peça decorre ainda com os demónios já vencidos a serem convidados pelo anjo para torturarem os imperadores romanos Décio e Valeriano, culpados da morte de S. Lourenço. A tirania era assim castigada precisamente por quem antes colaborara com os próprios inimigos.
A peça, repleta de anacronismos mas também de alegorias, não deixa de ser interessante pelos múltiplos recursos de que se serve. A realidade local está presente tanto pela inclusão de indígenas na representação de algumas personagens, incluindo um grupo de crianças que no último acto executa uma dança de louvor a S. Lourenço, como pela utilização de diálogos e vocábulos em línguas diversas como o português e o castelhano (o bilinguismo dirigia-se aos colonos portugueses e aos muitos espanhóis que então se encontravam no Brasil), o guarani, o tupi e o tupinambá. O acompanhamento musical, as danças e o recurso à prática do sermão (pregado pelas personagens «Temor de Deus» e «Amor de Deus») convergem para enriquecer a representação, conferindo-lhe uma grande diversidade de ritmo, de colorido e de movimento que naturalmente prendiam a atenção dos espectadores.
Por volta de 1585, assiste-se à representação de um outro Auto na aldeia de Guaraparim, no Espírito Santo, integralmente escrito na chamada língua «brasílica», um misto de dialectos locais. Mais uma vez os demónios pretendem dominar a aldeia, buscando a cumplicidade de um índio de nome Pirataraca, já falecido. Mas a alma de Pirataraca permanece fiel à fé cristã e acaba sendo ajudada por um anjo, salvando-se assim a aldeia do ataque inimigo. A preocupação nesta, como noutras peças, não se restringia apenas à difusão da fé. O seu intento era ainda o de condenar práticas tradicionais que colidiam com os valores cristãos, como a poligamia, o fumo ou a antropofagia.
Além das obras mencionadas, Anchieta escreveu ainda outras como Na Vila de Vitória, uma peça cujo intento era o de justificar a legitimidade de Filipe II como rei de Portugal, ou Na Visitação de Santa Isabel, seu derradeiro texto.
Para Décio de Almeida Prado, historiador do teatro brasileiro, permanecem dúvidas sobre a autoria de algumas das peças atribuídas a Anchieta. Mas, decorridos mais de quatro séculos, tal dúvida não se afigura como algo de importante. O certo é que o espólio dramático que lhe é atribuído constitui sem dúvida o verdadeiro nascimento de um teatro feito no Brasil e especialmente destinado aos seus naturais.
Com 60 anos de idade é já um homem fatigado. Mesmo assim, no ano seguinte (1595) Coimbra publica a sua famosa Arte de Gramática da Língua mais Usada na Costa do Brasil.
Morre aos 63 anos de idade em Reritiba, no estado de Espírito Santo. O seu corpo foi a sepultar na cidade de Vitória, mobilizando um cortejo acompanhado por milhares de índios. Em sua memória, a cidade de Reritiba passou a denominar-se Anchieta, homenageando o missionário que João Paulo II beatificou em 1980.
Seria de esperar que o século XVII desse continuidade a esta produção teatral de tanta importância para a catequese jesuítica. Mas, se por um lado não surgiram homens vocacionados para esse género literário, há que reconhecer que as tarefas dos missionários eram agora bem mais necessárias na luta pela defesa dos índios contra os ataques sistemáticos que a exploração colonizadora desferia sobre as populações nativas.
A instabilidade social, militar e política do século XVII não era favorável ao desenvolvimento de actividades de cariz cultural. Um conjunto de lutas e de rebeliões, de guerras contra franceses e holandeses, de conflitos entre jesuítas e colonos, impediram que os homens da Companhia de Jesus pudessem dar continuidade à linha condutora de evangelização que caracterizara o século precedente. E o teatro jesuítico deixa, praticamente, de existir, sobrevivendo apenas em algumas manifestações quase exclusivamente confinadas ao interior dos colégios.
Sabe-se que esporadicamente, para celebrar algum evento cívico ou religioso mais significativo, se organizavam representações. Assim aconteceu em 1620, na Baía, com a representação de um Drama. Também se representavam comédias, como aconteceu no Rio de Janeiro, em 1641, para comemorar a Restauração da Independência de Portugal, mais tarde repetidas no Recife e no Maranhão, ou na Baía, em 1662, celebrando o casamento de Carlos II de Inglaterra com a princesa Catarina de Portugal.
Aquando da instalação da Província Franciscana da Imaculada Conceição no Rio de Janeiro, em 1678, terão ocorrido diversos festejos que integraram representações teatrais. Há ainda notícia da apresentação de um Auto de S. Francisco Xavier no Maranhão, em 1688.
Mas não haveria produção literária dramática no Brasil? É bem possível que alguns divertimentos parateatrais, ou mesmo representações de comédias tivessem sido criados por naturais da colónia. É provável que tal acontecesse dada a influência que o teatro espanhol assumiu no século XVII. E, por certo, o Brasil não estaria de todo imune a estas influências. Mas são muito escassos os registos disponíveis a este respeito.
Deste panorama sobressai o nome de Manuel Botelho de Oliveira (1636-1711), um baiano culto e poliglota, cultor exímio do barroco então em voga, que em 1705 vê publicadas em Portugal (os prelos eram proibidos na colónia) poesias e duas obras dramáticas redigidas em castelhano e enformadas pelo estilo espanhol, da comédia de capa e espada, textos que, provavelmente, nunca chegaram a ser representados: Hay Amigo para Amigo e Amor, Engaños, y Zelos.
FERNANDO PEIXOTO - In Teatro-Enciclopédia Didacta.Agualva-Cacém, 2005

2 comentários:

Anónimo disse...

Em nome de meu povo e de meu país quero deixar aqui registrada toda admiração e emoção pela qualidade do trabalho excelente aqui exposto
Faço questão de divulgar para o maior número possível de brasileiros, a obra de Fernando Peixoto e sua paixão pelo Teatro como ferramenta de integração do ser humano onde quer que esteja; a linguagem que dispensa fronteiras.
Meu aplauso. Sylvia Cohin

Anónimo disse...

Neste texto, como Anchieta e outros contemporâneos, verte a mais pura arte, estudo, criação e divulgação de informação cultural com abrangência ilimitada, para tantos e quantos queram sorvê-la, transformá-la ou adequá-la às suas competências/talentos individuais ou coletivos, nas mais variadas formas de comunicação -verbal ou corporal; da prosa ao verso; do teatro ao cinema....Entendemos que a cultura é o alimento da alma, uma vez assimilado e compreendido precisa ser processado e vivenciado nas mais variadas formas.
Não diferente do passado, o Brasil, com sua gente inteligente,versátil e criativa, foi e continua sendo, terreno fértil para transformar em arte informações do gênero. Aqui cohabitam e florescem um sem número de artistas e teatrológos renomados nos mais diferentes segmentos. Parabéns, Fernando Peixoto, pela valiosa contribuição à arte e à cultura!