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quarta-feira, março 29, 2006

O TEATRO NO BRASIL SETECENTISTA



TEATRO DE MANUEL LUÍS (à esq.)
TEATRO DE OURO PRETO OU CASA DA ÓPERA (à dir.)
O teatro de que o Brasil desfruta no século XVIII é ainda muito influenciado pela Igreja, está confinado aos centros populacionais mais importantes e vive essencialmente da «importação» de espectáculos provindos de Lisboa.
Começando por Salvador, na Bahia, onde estava sediado o vice-rei, vai-se deslocando sucessivamente para o Rio de Janeiro, cidade que começa a conhecer um maior desenvolvimento económico e político. E, à medida que algumas cidades do interior iam adquirindo o protagonismo que a mineração lhe conferia, casos de Minas Gerias ou Mato Grosso, assim se deslocavam, também, alguns espectáculos para gáudio dos exploradores.
Será sobretudo na segunda metade do século que a representação de espectáculos teatrais irá conhecer um novo impulso. Igrejas, palácios de personalidades ligadas à governação ou mesmo a praça pública, são aproveitados como locais para representações. Só mais tarde, depois de reconhecida a importância educativa que o teatro podia assumir, é que se começam a edificar locais destinados especialmente às representações: são as denominadas Casas da Ópera. Por aí começaram a surgir não apenas representações operáticas mas igualmente a apresentarem-se comédias, parte delas representada em castelhano, ou então vindas de Lisboa, já traduzidas - nem sempre com o necessário rigor - e que aqui chegavam também sob a forma de folhetos de cordel: a «moda» acabava por ser importada de Lisboa!
A compreensão do papel formativo do teatro impeliu os poderes públicos a favorecerem a edificação de espaços teatrais (admite-se que o primeiro tenha aparecido em 1760, na Bahia, o qual ficou conhecido como o «teatro da praia», composto por 28 camarotes e com um palanque para a acomodação das mulheres) e a criação de companhias locais, que contratavam actores brasileiros pertencentes às classes menos favorecidas, sobretudo mulatos, negros, escravos, a maior parte, naturalmente, sem qualquer preparação anterior e muitas vezes desprovidos de quaisquer direitos de cidadania.
Claro que os elencos eram constituídos exclusivamente por homens, já que a actuação de mulheres estava interdita, o que implicava a utilização sistemática de travestis, criando situações de representação verdadeiramente grotescas, por mais que os homens se esforçassem numa boa imitação. De resto, havia mesmo actores especializados na representação de papéis femininos.
Há que ressalvar, entretanto, que sendo esta a norma, terá havido casos em que os elencos integraram mulheres. Décio de Almeida Prado, no Teatro de Anchieta a Alencar, dá-nos conta da presença de freiras e outras personagens femininas representando em «manifestações teatrais ou parateatrais, de natureza privada e repercussão restrita, com margem para improvisações pessoais e libertinas», o que mostra bem que nem sempre os espaços sagrados estavam exclusivamente reservados para as manifestações piedosas!
Convém não ignorar que a actividade teatral era ainda por muitos considerada uma arte imprópria para «gente de bem» e completamente proibida ao sexo feminino, que chegava mesmo ao cúmulo de não permitir mulheres entre os espectadores, principalmente em espectáculos cujo conteúdo pudesse, de alguma maneira, ser considerado mais licencioso. Depois, eram estas companhias que levavam os seus espectáculos aos vários edifícios entretanto construídos, representando sobretudo em momentos festivos e promovendo uma itinerância que acabaria por tornar mais alargado o gosto pelo teatro.
Quando alguns actores portugueses se deslocavam ao Brasil, o que não seria demasiado frequente mas que mesmo assim ia acontecendo de forma esporádica, o seu teatro arrastava verdadeiras multidões de curiosos. Sabe-se, por exemplo, da sua presença em Vila Rica.
O grande impulso para a existência de um teatro local terá sido, mais uma vez, dado por gente ligada ao clero, como o padre Ventura, que dirigia a Casa da Ópera, criada em 1767, e aí encena obras de António José da Silva, um brasileiro que viveu a maior parte da sua curta vida em Portugal. Mas a actividade da Casa da Ópera acabaria com um incêndio que destruiu o edifício em 1769, precisamente quando ali se representava Os Encantos de Medeia, de António José da Silva.
Em 1776 surgiu o espaço do Teatro de Manuel Luís, um empresário que contratava companhias portuguesas. Mas a sala acaba por ser encerrada e D. João VI ordena a construção do Real Teatro de S. João, inaugurado em 1813 e destinado essencialmente à representação de companhias vindas de Portugal, tanto mais que a corte se encontrava já no Brasil.
Outros espaços foram aparecendo, pelos finais do século, como a Casa da Comédia, em S. Paulo ou em Vila Rica, montando- se espectáculos com peças de autores portugueses, italianos, espanhóis, franceses, muitas das vezes chegando ao Brasil adulteradas por sucessivas adaptações, quando não mesmo sem identificação da autoria.
O repertório não sendo muito variado, privilegiava claramente a farsa e a comédia do chamado teatro de «capa e espada» do siglo de oro, com preponderância para Zorrilha e Calderón. El Conde de Lucanor e Afectos de odio y amor, duas comédias de Calderón de la Barca, foram apresentadas em 1717.
As companhias locais não podiam deixar de reflectir as claras insuficiências da sua preparação, apesar do investimento que por vezes era feito numa certa sumptuosidade e fantasia cenográfica, que não se coibia de espelhar os exageros ao sabor da imaginação dos seus criadores, o mesmo acontecendo com o figurino, que procurando imitar o das personagens reais, era muitas vezes empolado por ornamentos claramente anacrónicos. Também não se podia exigir grande rigor de interpretação, sobretudo levando em conta que a maior parte dos intérpretes era analfabetos. A sua «escola teatral» era a da vida e a da observação, pelo que as personagens representadas eram frequentemente imitações de outras que tinham sido vistas nas representações de companhias profissionais.
Além dos autores já referidos, Metastásio, Voltaire, «o Judeu», Maffei, Goldoni e Molière foram alguns dos autores que integraram o repertório da época, nos diversos palcos do Brasil setecentista.
Mas nem só de autores estrangeiros viveu o teatro brasileiro de então. A sua difusão proporcionou o aparecimento de nomes que não podem - nem devem - ser olvidados, destacando-se entre eles o poeta e compositor, natural do Recife, Luís Alves Pinto (1719-1789). Tendo estudado música em Portugal, Alves Pinto dedicou-se à pedagogia ao mesmo tempo que compunha a sua música e os seus poemas, tendo visto ainda representada, em 1780, aquela que foi considerada a primeira comédia escrita por um autor brasileiro, intitulada O Amor mal correspondido.
Outro dos autores que contribuiu para o espólio teatral brasileiro foi o poeta Cláudio Manuel da Costa (1729-1789), autor do drama em verso Parnaso obsequioso.
Filho de portugueses que estavam ligados à exploração mineira, fez estudos em Ouro Preto, de onde seguiu para o Colégio de Jesuítas do Rio de Janeiro, completando em Portugal os seus estudos de Direito, vindo a exercer advocacia e diversos cargos públicos.
Da sua passagem por Portugal trouxe várias influências: integra a Arcádia existente em Vila Rica (Ouro Preto), convive com outros intelectuais como Tomás António Gonzaga ou Alvarenga Peixoto, cultiva uma poesia vincadamente barroca, de temática rústica ou pastoril vertida em fábulas, cantatas e em sonetos de notável perfeição. A sua estada em Coimbra, aliada ao conhecimento da dura vida das minas, terá contribuído para desenvolver uma certa tendência de rebeldia. Implicado como conspirador na Inconfidência Mineira, é preso e acaba morrendo na cadeia, segundo alguns historiadores vítima de suicídio.
Curiosamente - ou não - o teatro brasileiro deste século deve os seus nomes maiores a homens de ideais progressistas e revolucionários. Já falámos de António José; do poeta português Tomás António Gonzaga que, sem escrever teatro, produziu a sua melhor poesia em terras brasileiras; de Cláudio Manuel da Costa, vítima da Revolta do «Tiradentes».
O seu grande amigo, Inácio José de Alvarenga (1744 ?-1792 ?), que mais tarde acrescentou ao seu nome o apelido literário de Peixoto, teve um percurso bastante semelhante. Como Cláudio Manuel da Costa, também Alvarenga Peixoto estudou Direito em Coimbra, regressando ao Brasil em 1775. Dedica-se também à poesia, integra o movimento arcádico e acaba, também ele, por ser preso e condenado à morte como conspirador da Inconfidência. Contudo, a pena é comutada em degredo, que virá a cumprir em Angola, falecendo no presídio de Ambaca em 1792.
Embora a sua obra não tenha atingido a notoriedade nem o volume de Gonzaga ou de Cláudio Costa, o certo é que lhe é atribuído o drama lírico Eneias no Lácio, obra que infelizmente se terá perdido.
De todos os autores teatrais setecentistas, o maior foi, sem dúvida, «o Judeu». E se Portugal dele se orgulha, o Brasil tem motivos redobrados para amar intensamente este filho que nas suas terras nasceu para engrandecer a dramaturgia de língua portuguesa.
FERNANDO PEIXOTO - Teatro. In Enciclopédia Didacta. Lisboa: F.G.P. Editores, 2005.

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