Eis um espaço de partilha para gente que se interessa por teatro e outras artes. Podemos e devemos partilhar: fotos, reflexões, críticas, notícias diversas, ou actividades. Inclui endereços para downloads. O Importante é que cada um venha até aqui dar o seu contributo. Colabore enviando o seu texto ou imagem para todomundoeumpalco@gmail.com

terça-feira, novembro 04, 2008

Crítica por Pretérita Pessoa

“Os Estados Eróticos Imediatos de Sören Kierkgaard”

de Agustina Bessa Luís

pelo Seiva Trupe

Direcção de Roberto Merino

Desta peça, Carlos Porto (1930-2008) crítico teatral especialmente ligado ao Porto e aos grupos mais antigos da cidade, nos quais o Seiva Trupe honrosamente se inscreve, provavelmente acentuaria – como em muita da sua produção crítica, sendo um exemplo a generosa menção a Cenas da Vida do Príncipe Hamlet, encenação de Roberto Merino com alunos da ESAP no FITEI 2004 – as qualidades e o trabalho específico de cada um, sejam pessoas ou elementos que constituem a peça.

Provavelmente Carlos Porto falaria de Paulo Calatré, e de como este tão claramente somatiza o tormento de Kierkegaard na sua caracterização do filósofo, fazendo um homem que carrega uma corcunda como, simbolicamente, um peso; e falaria também da presença ágil e voz desenvolta de Jorge Loureiro, num D. João vexado e apoquentado; e mencionaria também a impressionante segurança da Tia, de Clara Nogueira, com a força necessária para dar luta ao protagonista, sedutor que se descobre.

Também o crítico não descuraria falar da ingenuidade patética, em especial na face e voz, da personagem de Miguel Rosas, esse Frederick, para sempre putativo noivo da Regina Olsen de Isabel Nunes, vibrante na sua primeira aparição, ao piano, num silêncio incomportável perante Kierkegaard, com o corpo e os olhos em tensão como que numa espera inquieta de poder falar.

De certeza que Carlos Porto também referiria Hugo Sousa, companheiro do filósofo, libertino mais libertino que Kierkegarard, sem os remorsos e com o orgulho que tão bem demonstrou no modo desabrido com que falava da sua relação com a actriz representada por Anabela Nóbrega, uma Julieta de quarenta anos; a voz de Anabela Nóbrega não deixaria por certo de merecer que se lhe sublinhasse a beleza do timbre.

Parece-nos também evidente que o decano dos críticos não deixaria por dizer que as Criadas Carolina Sousa, Juliana Rodrigues, Lizete Pinto, Vânia Mendes e Vera Pitrez representaram na perfeição – em uma espécie de coro – a seduzida sedutora, cada uma com um tom diferente como as diferentes situações onde cada qual languidamente enunciou ser abordada pelo filósofo. O mesmo Kierkegaard que nesta peça gostava da companhia das criadas e era inseparável do seu guarda-chuva - esse pretexto tão bom como outro qualquer para enredar uma criada que poderia não ter noivo ou namorado e se encontrasse a passear o cãozinho dos senhores.

Carlos Porto haveria também de falar do acerto dos figurinos de Manuela Bronze, na sua sugestão de toda uma época sobretudo pelas cartolas dos homens assim como pelas toucas das criadas, elemento este tão citado de atracção e maldição; e da cenografia de Acácio de Carvalho também falaria, dizendo por certo da sua versatilidade – por um lado – dos módulos metálicos, como da opulência visual dos panos vermelhos em fundo, que, como teatrais cortinas de uma teatral invocação de máscaras e mitos, estão presentes sempre para só se fecharem em conclusão.

A luz de Roberto Merino e Davide da Costa levaria, decerto, a falar da penumbra final que o é também na vida da personagem central, em jogo com a luz da chama no livro que arde no fim; o desenho de som de José Prata e Daniel Santos que tão bem pontua passagens e memórias (como o caso do D. Juan de Mozart ouvindo-se em fundo, na mais plena assunção do carácter sedutor de Kierkegarard) ou presságios (no esvoaçar da ave, quase um arranhar) também seria mencionado.

E a direcção de Roberto Merino seria com certeza relevada nas palavras de Carlos Porto por concentrar em pouco espaço e pouco tempo (menos de hora e meia) várias vidas e uma em particular, a do protagonista, que vai do orgulho à queda: em dinâmicas movimentações de cena e de objectos cenográficos, criando vários cenários que multiplicam a sala, e lhe dão - como em especial com o uso da porta que o era para a rua, o jardim ou, simbolicamente, para uma saída a que Kierkegaard se furtava – dão o paralelo justo às tensões que intensas sucederam às não menos intensas seduções entre as personagens.

Talvez o dissesse Carlos Porto, crítico nobre e generoso na sua atenção. Talvez muito provavelmente o fizesse. E nós assinaríamos por baixo.

Nuno Meireles

2 comentários:

Anónimo disse...

E eu que vi a peça e à qual já fiz referência em dois posts anteriores, também assinaria por baixo e assino e aplaudo este texto tão esclarecedor do professor Nuno Meireles, como aplaudo de pé a coragem de ter aqui exposto a sua crítica por Pretérita Pessoa e ter estado absolutamente à altura do criador deste espaço, que de onde está lhe sorrirá neste momento.
Parabéns por estes dois últimos posts que nos trazem e que quer para os alunos da ESAP, quer para o público que por aqui passa são excelentes meios de informação e de aprendizagem.
Vejo com muita alegria que Todo o Mundo é um palco continua a brindar-nos com excelentes textos e na mesma linha a que estavamos habituados.
Deixo um abraço.
Branca

Rosa Brava disse...

Pelo apreço que tenho por este blogue e em Homenagem ao Ser Humano maravilhoso que pela mão me trouxe aqui, tenho um Prémio que espero que aceite.

Um abraço carinhoso,

(pelo cariz deste Blogue, não se sinta obrigado a cumprir as regras do Prémio atribuído)