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segunda-feira, junho 09, 2008

O QUE EU ESPERO DO TEATRO


Falando de Peter Brook, o actor/encenador/pedagogo João Mota, conta que:
«Peter Brook fazia muitas vezes uma pergunta que não vem em livro nenhum:
― Quando um grupo de pessoas se encontra numa estação de caminhos-de-ferro, há umas que partem e outras que chegam, mas há uma necessidade de lá ir ― vai-se lá buscar alguém ou vamos despedir-nos de alguém; quando vamos ao restaurante, há uma necessidade de comer; quando vamos ao teatro, qual é a necessidade? [sublinhado nosso]
[1].
Quando lia a recente edição portuguesa de O Espaço Vazio, de Peter Brook, veio-me à memória um conjunto de discussões que ultimamente tenho travado com alguns amigos sobre a essência do teatro. E, na maior parte das vezes, estamos em desacordo. Pela simples razão de que continuo a pensar que a arte teatral só existe e se justifica quando se estabelece um «diálogo» entre o actor e eu/espectador.
João Mota, citando Brook, pergunta precisamente aquilo que muitas vezes me tem assaltado: que vou eu fazer ao teatro? Qual é a minha necessidade?
Quando vou a alguns teatros, sento-me confortavelmente em cadeiras (algumas de veludo) e gasto algumas horas vendo actores em movimento, falando, falando, como se falassem consigo mesmos ou apenas estivessem pensando em voz alta, muitas vezes parecendo mesmo terem caído ali por estranho acaso, mas dando a nítida impressão de nada terem a ver uns com os outros e muito menos com o espaço que ocupam. Ou então proferindo frases espaçadas sem qualquer lógica, debitam palavras que nada têm a ver com a vivência do quotidiano do comum dos mortais. Muitas vezes adormeço!
Não me parece que o sucesso do teatro na Grécia antiga fosse consequência da afluência de um público especialmente preparado para ver teatro. Todos sabemos que o público do teatro desse tempo era cultural e socialmente bastante heterogéneo e, todavia, também ele participava nas votações para a classificação dos vencedores dos concursos de tragédia. Os prólogos das peças gregas e romanas mostram-nos bem como os autores procuravam sensibilizar a atenção do público para os seus trabalhos.
Hoje, parece que o drama, a comédia e a tragédia estão fora de moda e o que está a dar é precisamente construir textos e espectáculos que inventem uma realidade que ainda não é a nossa, ou seja, espectáculos que sendo incapazes, por si próprios, de motivarem a atenção e a reflexão do espectador, são vestidos com um tom de falsa declamação, completamente artificial e revestidos o mais possível com grandes efeitos cenográficos, luminotécnicos, ou sonoros.
«A imaginação é um músculo». Esta frase é também de Peter Brook, o mesmo que jamais se inibiu de montar os mais exigentes espectáculos em espaços vazios onde, à partida, a maioria dos encenadores diriam que era impossível montar um espectáculo. Mas, como Brook, também Augusto Boal provou, sem margem para dúvidas, a possibilidade de montar espectáculos no interior das aldeias índias, no meio confuso de um supermercado ou no espaço em movimento de um comboio.
Depois disto, é caso para questionar: quando vou ao teatro, exercito o músculo da imaginação? Se for «encandeado» pelo brilho dos efeitos especiais, é óbvio que a minha atenção fica presa a eles, desaparece o diálogo que o actor deveria travar comigo e fenece em mim qualquer apetite de reflexão.
Quando hoje em dia se vêem grandiosas montagens de Shakespeare, esquecemo-nos dos limitados recursos de meios e de espaço de que se servia Shakespeare e os seus contemporâneos para fazerem aparecer o «Espectro» dialogando com «Hamlet», tal como não havia mar na cena. Muito do que se dizia e representava, resultava do trabalho da imaginação que a obra e os seus fautores (do autor ao ensaiador, dos artífices aos actores) solicitavam ao público. E nem por isso o teatro isabelino deixava de atrair multidões. Não admira: as tragédias gregas nunca necessitaram de derramar sangue em palco para que os espectadores percebessem e se condoessem com as personagens que tinham «morrido» entre cenas.

UM ESPECTÁCULO A RECORDAR

Há pouco mais de duas semanas fui atraído por um espectáculo que para mim era uma verdadeira incógnita, ainda pelo facto de se tratar de um aproveitamento de textos de Brecht adaptados para teatro pelo Teatro Arado em co-produção com o Espaço T: As Histórias do Senhor Keuner.
A sala do Cine-Teatro Brasão estava a pouco menos de metade da sua lotação e, como mais tarde deduzi, grande parte dos espectadores eram constituídos por familiares e amigos das actrizes e actores que integravam o espectáculo.
Confesso desde já que não estava minimamente preparado para ver este espectáculo e nem me dei ao cuidado de ler a capa do programa (um modesto A4 dobrado) que definia «aquilo» como Teatro de Integração Social e Comunitária.
Por isso, logo nas primeiras aparições dos actores os meus olhos «viciados» notaram que havia ali algo de estranho. Eles não falavam como os «outros», não se movimentavam como os «outros» não olhavam como os «outros». Mas, curiosamente, parecia haver algo de indefinido que fazia com que se relacionassem entre eles de uma forma natural. O contacto físico era de grande espontaneidade; partiam de um movimento para o outro como quem vai da cozinha para a sala de jantar, impulsionados por uma palavra ou por um som musical.
Nas falas das actrizes e actores notava-se que havia algo de diferente em relação ao que estamos habituados a ouvir nos actores profissionais. Mais lentidão, por vezes, como se houvesse algumas dificuldades de articulação nas palavras, subidas e descidas de voz que pareciam menos ensaiadas que sons saindo do interior de cada um deles. Também os movimentos eram claramente diferentes daqueles que se ensinam no teatro profissional: os passos pareciam obedecer mais ao instinto do que a qualquer mecanização programada pela encenação, mas não deixavam de partilhar, de forma harmónica, os espaços que os separavam. Depois… bem, depois «escutei» silêncios inesperados e longos que me provocavam sucessivas interrogações.
Quem era esta gente? Como haviam chegado ali? O que os tinha motivado para este espectáculo?
E, o mais surpreendente: a coreografia desenvolvida parecia estar em perfeita harmonia com uma aparente falta de jeito para o ballet. Mas seria isso que se procurava? E, quando se ocultavam como uma massa informe, sob um enorme pano, faziam-no de forma tão convincente que eu me quedava numa ansiosa expectativa: que virá a seguir?
Lentamente fui-me apercebendo do que se passava, do que se pretendia transmitir, da exiguidade de recursos que amplifica a imaginação, e dei por mim surpreso perante aquilo que contemplava. E não adormeci !
No final tive a oportunidade de conviver durante alguns instantes com as actrizes e actores que participaram no espectáculo: e senti-me feliz ao compartilhar das sonoras e alegres gargalhadas de alguns deles, da forma desinibida como comunicavam, sem se importarem com os olhares de viés de alguns «vizinhos».
Eles tinham conseguido preencher um espaço praticamente vazio com uma arte reinventada, fruto da provocação que o grupo do Teatro Arado lhes fez.
E aconteceu TEATRO! Se não foi uma experiência nova, foi, pelo menos, original. E para mim foi altamente gratificante, recordando-me aquilo que Peter Brook escreveu:
«Para que alguma coisa relevante ocorra, é preciso criar um espaço vazio. O espaço vazio permite que surja um fenómeno novo, porque tudo que diz respeito a conteúdo, significado, expressão, linguagem e música só pode existir se a experiência for nova e original. Mas nenhuma experiência nova e original é possível se não houver um espaço puro, virgem, pronto para recebê-la».

É ISTO QUE EU ESPERO DO TEATRO!


NOTA ― O «Espaço T» surgiu no Porto, há quase dez anos, com o objectivo de redefinir a tradicional abordagem de ressocialização das minorias desfavorecidas e marginalizadas. Aqui convivem no mesmo espaço deficientes, toxicodependentes e pessoas "normais", recorrendo à arte como instrumento de terapia.


(Texto publicado em Que Cena, n.º 1-Primavera-2008)


FERNANDO PEIXOTO


[1] ― BROOK, Peter ― O Espaço Vazio. Lisboa: Orfeu Negro, 2008, p. 213.

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