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segunda-feira, outubro 24, 2005




Lançamento da obra em 11 de Novembro na Biblioteca Municipal de Ovar pelas 21:30 com apresentação de Fernando Peixoto.

O CAVALEIRO DA UTOPIA

de Manuel Ramos Costa

Há precisamente 400 anos Juan de la Cuesta publicava em Madrid a primeira parte de Don Quijote de La Mancha, a genial obra de Miguel de Cervantes e Saavedra (Alcalá de Henares, 1547 - Madrid, 1616), com toda a probabilidade escrita ainda no Verão de 1604.

Como era usual na época, Cervantes deverá ter solicitado a literatos e outras personalidades que escrevessem alguns versos a propósito da sua obra, o que serviria para a «promover». Embora não fosse um total desconhecido (eram conhecidas as suas façanhas de guerreiro e as atribulações que o levaram à prisão, ao exílio, ao cativeiro), pois já em 1568 publicara pequenas composições e Galateia aparecera em 1585, o certo é que os seus contemporâneos e confrades literários não terão percebido (ou querido admitir) a genialidade da sua obra, como se viu com o grande dramaturgo Lope de Vega que instado para apreciar a obra, escreveu numa carta: «nenhum (poeta) é tão mau como Cervantes nem tão néscio que se curve a don Quijote». E isto deverá explicar o porquê de logo no prólogo da primeira parte Cervantes ridicularizar as poesias de louvor que apareciam nos livros, inserindo na sua novela versos humorísticos atribuídos a famosas personagens de livros de cavalaria.

Mas ao contrário da «douta» opinião dos literatos, logo em 9 de Fevereiro de 1605 o mesmo Juan de la Cuesta publicava uma segunda edição, desta vez destinada a Portugal, crendo-se que a primeira já se houvera esgotado, embora agora aparecessem alguns acrescentos nos capítulos 23 e 30. Sucederam-se então edições clandestinas e outras legais, em Lisboa e Valência. Dois anos depois surgia uma nova impressão em Bruxelas e Juan de la Cuesta reimprime em 1608 uma terceira edição em Madrid, com mais alterações e variantes por certo saídas da pena do próprio Cervantes. A obra conheceu tal êxito que se conta hoje entre as mais divulgadas e traduzidas de toda a literatura.

Contemporâneo de Shakespeare, Calderón, Gôngora ou Tirso de Molina, se não os igualou no nível dramático, foi contudo um génio incomparável na arte da novela, lido e admirado não apenas por intelectuais, mas por gente de todas as idades que não deixam de maravilhar-se com as sucessivas aventuras desses dois famosos personagens tão complementares entre si como são D. Quixote e Sancho Pança. E se a imortalidade da obra se deve ao seu inquestionável nível literário, é igualmente credora da actualidade que faz dela um clássico capaz de interessar da mesma forma os leitores do século XVII como os do século XXI.

Pegar nesta obra para adaptá-la ao teatro é um desafio e um arrojo. Muitos o tentaram já, uns com mais sucesso do que outros, naturalmente, contando-se o «nosso» Judeu entre aqueles que melhor serviram dramaticamente o espírito cervantino.

Manuel Ramos Costa é um atrevido! Mas um atrevido sadio, daqueles que persistentemente nos surpreende pelo arrojo das suas opções estéticas enquanto encenador ou cenógrafo, mas também enquanto homem de letras.

Quando iniciámos a leitura da obra, mesmo tendo em conta a capacidade que reconhecemos em Manuel Ramos Costa, fizemo-lo com expectativa mas também com algum receio, de resto legítimo, se pensarmos no risco de transpor para um texto dramático um «pretexto» tão difícil como o D. Quixote de Cervantes.

Mas a surpresa viria ultrapassar todos os receios.

O Cavaleiro da Utopia possui ingredientes que o tornam não apenas atractivo mas igualmente merecedor de atenção cuidada.

Imbuído do espírito com que Cervantes concebeu a sua obra, Ramos Costa transpõe o mesmo carácter de ingenuidade que caracteriza tantas passagens das figuras da novela, com especial relevo para Sancho e Quixote e mesmo as gentes do povo surgem aqui eivadas desse mesmo espírito sem perderem a sageza que nos mostram as camadas populares que bebem no livro da Vida a sabedoria mais larga e mais profunda.

De ingenuidade vive a história original, de ingenuidade vive também esta peça, mas não daquela ingenuidade que se confunde com a estupidez e a ignorância, antes se veste de simplicidade e mesmo de candura e de bondade, como no caso exemplar da personagem da camponesa.

A linguagem a que Ramos Costa recorre é também um notável artifício de complementaridade entre o linguajar rural e a linguagem mais burilada do nobre D. Quixote, ao mesmo tempo que nos encaminha para um encontro com termos do vernáculo rural que a urbanidade em que nos inserimos tornou estranhos. E aqui reside, quanto a nós, uma das facetas mais interessantes deste texto, que frequentemente utiliza o provérbio como a refrescar a memória de todos nós para uma língua que a literatura em geral e o teatro em particular devem preservar.

O Cavaleiro da Utopia não é uma «peça de teatro infanto-juvenil» como a subtitulou o autor. E não o é pelo facto de não poder ter este sector do público como único destinatário. Com efeito, a peça pode perfeitamente ser vista e agradar a esses sectores etários, mas possui características que a tornam de interesse mais lato. É certo que os patamares etários condicionam as leituras e as interpretações e a peça (lida ou representada) terá, inevitavelmente, leituras diferenciadas conforme a idade de quem a lê ou a ela assiste, mas nem por isso se tornará menos interessante. Para além do tema possuir atractivos múltiplos, a forma como foi trabalhada pelo autor torna-a num texto rico de conteúdos e de motivação abrangente.

Os episódios cómicos surgem de forma (aparentemente) espontânea, o burlesco das situações que o genial espírito de Cervantes criou mantém-se e prolonga-se neste O Cavaleiro da Utopia e o recurso aos títeres não apenas nos parece extraordinariamente oportuno como revela aquilo que já conhecíamos em Ramos Costa: a influência da magia do teatro que tão bem o tem encaminhado ao longo de uma vasta carreira de encenador, demonstrando não ter sido em vão que montou espectáculos de grandes dramaturgos que também não hesitaram em recorrer ao teatro de bonecos para enriquecerem as suas criações. Será por acaso que Ramos Costa se tem mostrado tão atreito a Garcia Lorca? E depois de lermos este texto mais se arreiga em nós a convicção com que em tempos lhe dissemos que (também) ele estava possuído pelo espírito do duende, mais concretamente aquando da sua belíssima encenação de A Casa de Bernarda Alba

Encenador, dramaturgo, artista plástico, o autor mostra-nos ainda neste trabalho a sua inegável veia poética mas sobretudo demonstra-nos como o teatro vive (também aqui) desse namoro encantatório com o verso. O ritmo das réplicas respira frequentemente a aragem da poesia e ela surge de forma natural nas falas populares como nos versos dos Coros ou do Trovador, uma espécie de alter-ego do próprio dramaturgo. E não se pense que este recurso do Trovador é uma máscara por detrás da qual o autor pretenda disfarçar-se. Bem pelo contrário: ele não hesita ― e fá-lo de forma sublime ― em imiscuir-se no próprio enredo tornando-se mais uma das personagens, como se fosse um pai presente entre os seus filhos: as personagens que criou. É o que acontece quando introduz o magnífico episódio do retratista, catapultando a história para a actualidade, o que leva D. Quixote a criticar o próprio autor classificando a cena de «espertezas de um amigo da onça. O autor desta peça».

E assim, fazendo humor consigo mesmo, o autor intromete-se na história, cria e satiriza, provoca o riso e ri da situação que ele próprio criou.

Todo o texto, enquanto peça literária, vive de uma escrita profundamente trabalhada e rica de ornamentos; mas enquanto «embasamento» do futuro edifício teatral em que acabará inevitavelmente por transformar-se, demonstra sem equívocos a experiência inegável de «carpinteiro teatral» que as suas múltiplas encenações tão exaustivamente têm demonstrado.

Se O Cavaleiro da Utopia toma como base o texto de D. Quixote, se é fiel na intenção com que Cervantes criou a sua obra-prima, bem se pode dizer que Manuel Ramos Costa lança um olhar verdadeiramente actual e crítico sobre a virtualidade da utopia e, mais do que isso, sobre uma certa «loucura», sadia e imprescindível para a manutenção dos valores e do equilíbrio da razão. É o que nos mostra o belíssimo diálogo que nos conduz ao final da peça:

«D. QUIXOTE – Escritos a meu respeito andam por aí de mão em mão, é verdade, mas não fazem jus à minha integridade. Pintam-me os piores retratos e dos meus reais feitos só escrevem boatos.

SANCHO PANÇA – Uns chamam-lhe cavaleiro da triste figura. Outros o espantalho da bacia.

D. QUIXOTE – Antes me chamassem cavaleiro da utopia, que bem melhor me assentaria o cabeçalho. (levanta-se) No fundo, bem no fundo, quem sou eu neste mundo? E neste mundo estando qual será o meu fim? E o que nessa hora dirá o mundo de mim?

SANCHO PANÇA (guardando o que lhe resta de comida) – Certamente o mesmo que ora se diz: que sois louco!

D. QUIXOTE – E vós, Sancho, sois dessa opinião?

SANCHO PANÇA – Oh não, senhor, louco não! Loucos são aqueles que na vida não têm loucuras!»


Foi também esta «loucura» que permitiu este belíssimo trabalho de Manuel Ramos Costa que sem reservas saudamos e que vivamente aconselhamos.

FERNANDO PEIXOTO

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