Eis um espaço de partilha para gente que se interessa por teatro e outras artes. Podemos e devemos partilhar: fotos, reflexões, críticas, notícias diversas, ou actividades. Inclui endereços para downloads. O Importante é que cada um venha até aqui dar o seu contributo. Colabore enviando o seu texto ou imagem para todomundoeumpalco@gmail.com

quarta-feira, dezembro 21, 2005

«CONTACTO» com Lorca e Bernarda Alba




Dizer que Federico García Lorca foi um inovador é pouco, restritivo e pouco significante; dizer apenas que foi importante a sua obra poética, é igualmente — dizendo a verdade — limitá-la. Tratando-se de um génio, Lorca abarcou os mais variados géneros artísticos: foi escritor, dramaturgo, poeta, músico, artista plástico, fazendo convergir em verdadeiras obras de arte as imensas capacidades artísticas que fizeram dele uma das mais emblemáticas figuras da cultura ocidental do século XX.
Falar do seu enorme contributo como homem e artista na luta pela liberdade é tentar uma aproximação ao real, mas pouco mais do que isso, pois Lorca foi tudo isso e muito mais do que isso. E mesmo hoje, a cerca de setenta anos de distância, podemos ainda aspirar o aroma e a frescura das suas propostas estéticas. A esta distância, ainda sentimos na boca o sabor amargo da revolta, face à cobardia que pôs termo a uma vida em pleno viço criativo.
Autor de obras que se imortalizaram na História do Teatro do século XX, seria difícil dizermos, como alguns, que a sua peça A Casa de Bernarda Alba é a sua obra-prima. Mas que está no patamar mais alto da sua criação, isso parece-nos inteiramente justificável.
Em 1936 a Frente Popular vence as eleições em Espanha. Federico lê para os amigos La Casa de Bernarda Alba. Já não assistirá à sua representação. A estreia verificar-se-á nove anos depois, em Buenos Aires.
Verdadeira tragédia do silêncio, A Casa de Bernarda Alba é por muitos considerada a maior obra da dramaturgia lorquiana.
Bernarda encarna as duas forças complementares da repressão: a Ordem e o Poder. Uma e outro impõem condutas de rigor insuportáveis a quem acha que tem o direito a ser e a existir. Bernarda nega e nega-se a si mesma. Outra força irrompe no conflito: o Sexo. O isolamento e a incomunicabilidade são o preço da negação do individual e da liberdade que o instinto sexual materializa. A tirania, a loucura, o suicídio parecem ser as únicas hipóteses de vida, uma vida que acaba por conduzir à morte, extremo de afirmação para uma revolta já insuportável. Mas a Morte é — continua a ser — a inevitabilidade, a trincheira que defende os valores de uma moral glacial e cruel e por isso o silêncio se impõe no final, quando Bernarda grita: «La hija menor de Bernarda Alba há muerto virgen. Me habéis oído? Silencio, silencio, he dicho! Silencio!».
Consciente do momento difícil que a sua pátria atravessa, Lorca parte para Granada e desabafa: «en este momento dramático del mundo, el artista debe llorar y reír con su pueblo. Hay que dejar el ramo de azucenas y meterse en el fango hasta la cintura para ayudar a los que buscan las azucenas». A tragédia de Bernarda Alba encarna esta forma de estar e de sentir do seu povo
[1], mesmo quando se diz que não havia no poeta a intenção política da denúncia ao escrever esta peça[2].
A verdade é que o ambiente político extremava-se aceleradamente. Em 13 de Julho de 1936, o líder do partido monárquico «Renovación Española», José Calvo Sotelo, é assassinado e grande parte do exército levanta-se em armas. Desrespeitando os resultados da eleição democrática, em 17 de Julho desse ano a Falange desencadeia a guerra civil.
Lorca estava completamente envolvido na trincheira popular. Uma denúncia anónima leva à sua captura. É acusado de comunista e fuzilado pelos falangistas em 19 de Agosto de 1936.
«Morra a inteligência! Viva a Morte!», gritavam aqueles que não suportavam escutar palavras como Liberdade, Poesia, Teatro, Cultura, Povo, interrompendo um discurso de Miguel de Unamuno, então reitor da Universidade de Salamanca, também ele vítima da crueldade da guerra civil, morrendo pouco depois, só e prisioneiro na sua própria residência.
Mataram Federico, mas a sua obra permanece viva até hoje. E, provavelmente pelos séculos adiante, as suas palavras continuarão a soar num barranco da Sierra Nevada, como sinos de liberdade, como um eco que se espalha pelos ares, impelido pelo vento oeste:
«... pero que todos sepan que no he muerto; que hay un establo de oro en mis labios; que soy el pequeño amigo del viento Oeste; que soy la sombra inmensa de mis lágrimas ...»
Quiseram matar o Poeta: mas da terra fertilizada pelo seu sangue mártir nasceu um Mito: Federico García Lorca está vivo e o Teatro saúda-o! Porque
«el teatro es la poesia que se levanta del libro y se hace humana».
Ao longo de toda a sua obra, Lorca irá opor, numa constante e incontornável dicotomia, a Opressão e a Liberdade, uma e outra assumindo as mais diversas formas, sem que necessite de expurgar dos conteúdos o profundo lirismo que sempre acompanhou os seus trabalhos. Assim alcança a rara beleza de integrar no conflito a fusão harmónica da poesia com o drama, demonstrando uma capacidade verdadeiramente inigualável que só estava ao alcance do seu génio ímpar.
Para Lorca, a arte teatral constituía uma «escuela de llanto y de risa y una tribuna libre donde los hombres pueden poner en evidencia morales viejas o equivocas y explicar con ejemplos vivos normas eternas del corazón y del sentimiento del hombre. Un pueblo que no ayuda y no fomenta su teatro, si no está muerto, está moribundo; como el teatro que no recoge el latido social, el latido histórico, el drama de sus gentes y el color genuino de su paisage y de su espíritu, con risa o con lágrimas, no tiene derecho a llamarse teatro, sino sala de juego o sitio para hacer esa horrible cosa que se llama matar el tiempo».
Pôr em evidência velhas morais, eis o que sobressai nesta como noutra peças. E se hoje sabemos que Bernarda Alba existiu e pertencia a uma família de Vallederrubio (antiga Asquerosa) onde os pais de Federico possuíam uma propriedade e onde o dramaturgo teria mesmo conhecido aquela família de mulheres (daí o subtítulo que deu à peça, de «Drama de las mujeres en los pueblos de España»)
[3], parece que pretendeu aproveitar aquele exemplo como «intención de un documento fotográfico» como então escreveu, embora consideremos que o seu objectivo mais amplo seria o de aproveitar o tema para falar do universal dilema da repressão, fazendo convergir aqui as forças de oposição irreconciliável, personificadas na autoridade de Bernarda e na ânsia de liberdade das filhas; no instinto de poder da mãe, absoluto e castrador e no instinto sexual das filhas, que desponta na proporção directa da repressão materna; autoridade versus liberdade, moral conservadora versus sexualidade assumida, eis os binómios em confronto[4].
E é precisamente aqui que a leitura da Companhia «Contacto» de Ovar, pela mão do encenador Ramos Costa nos questiona enquanto espectador.
À primeira vista poderíamos pensar que a «leitura» que o encenador faz da peça, sobretudo no seu final (no original lorquiano a filha mata-se, enquanto Ramos Costa finaliza com a filha disparando sobre a mãe), desvirtua o sentido de Lorca; meditando um pouco mais, encontramos uma lógica que a enjenação acaba por explicar com clarividência.
Lorca nunca chegou a ver a peça representada nem mesmo teve tempo para mudar os nomes das personagens (como habitualmente fazia, e que por ter sido assassinado não chegou a esse «cuidado»); caso tivesse vivido o suficiente para assistir à barbaridade do saldo da Guerra Civil espanhola, Lorca teria mantido aquele final? Nunca o saberemos, mas talvez Ramos Costa não «escandalizasse» o autor, ao pretender ― como o fez ― assumir a «morte» da repressão através da acção da filha disparando sobre a mãe. Há ainda a questão de poder perguntar-se se não é legítimo ao encenador fazer a «leitura» de um texto tendo em conta a mensagem que pretende vincular com o seu espectáculo (porque montar um texto dramático é construir um espectáculo).
Para nós, essa legitimidade é inquestionável, uma vez que o texto é sempre o PRETEXTO para a montagem do espectáculo teatral.
Há ainda que sublinhar outros aspectos desta realização da CONTACTO.
Ao nível do suporte sonoro, pareceu-nos numa primeira reflexão que deveria ter-se privilegiado mais a «cor» da música andaluza. Mas posteriormente achámos que na realidade o drama de Bernarda não é apenas espanholm mas universal e alguns casos semelhantes conhecemos noutras paragens, incluindo o interior do nosso país.
Cenograficamente bem construído, este espectáculo releva uma montagem que prima pela simplicidade de meios e sobretudo pela carga simbólica dos objectos que nele têm «significado» e por momentos recordámos mesmo algumas propostas de Meierhold, cônscios de que somente um ou outro pormenor estabelece essa coincidência. Por isso atrevemo-nos a considerar que se encontra na mais-valia da experiência curricular do encenador a explicação para o recurso tão feliz a elementos de grande simplicidade, estabelecendo uma feliz concordância entre o natural e o simbólico.
Uma nota final para a interpretação que sabemos ser sempre difícil para quem ousa montar um trabalho com estas exigências: sinceramente, não tínhamos grandes expectativas quanto à capacidade do elenco, sobretudo porque a carga emotiva e psicológica que deveria ser-nos transmitida pelos actores não era acessível à maioria dos actores e actrizes do teatro de amadores. E aqui fomos surpreendidos com belíssimas actuações que verdadeiramente nos deixaram preso durante todo o espectáculo. E sem querermos evidenciar nenhum deles em especial, não podemos deixar de realçar a MAGNÍFICA (porque exigente e difícil) interpretação da personagem Maria Josefa, mãe de Bernarda, a cargo de Conceição Gonçalves. Do corpo à voz, da alegria de representar à capacidade de reflectir-nos uma mulher idosa coexistindo livre e sonhadora no meio da opressão autoritária, Conceição Gonçalves soube arrancar da plateia aplausos prolongados e inteiramente merecidos.
Concluindo: a CONTACTO tem em cena um espectáculo invejável de qualidade e de seriedade, digno dos seus já sólidos pergaminhos, e pena é que esta gente continue a trabalhar denodadamente em prol do Teatro, sem os meios que tantos auferem com muito menos qualidade e muito menor empenho.

FERNANDO PEIXOTO
(Publicado em 16 de Junho de 2005 no Tribuna Press (Ovar) de 16 de Junho de 2005)
[1] ― Alberto del Monte ― «Il realismo di La Casa de Bernarda Alba», Belfagor, XX (Março de 1965), págs. 130-148.
[2] ― «Estas tentativas de ver a situação espanhola reflectida na obra, por muito lógicas ou naturais que sejam, não nos convencem» (tradução nossa), escreveram Allen Josephs e Juan Caballero na Introdução a Federico García Lorca ― La Casa de Bernarda Alba. Madrid, 29ª ed., Ediciones Cátedra, 2002, p. 95.
[3] ― Cf. Claude Couffon ― Granada y García Lorca. Buenos Aires: Losada, 1967, p. 33.
[4] ― Vale a pena ler o capítulo sobre Lorca, essencialmente sobre esta peça, de Francisco Ruiz Ramón ― Historia del Teatro Español siglo XX. Madrid: Cátedra, 1997, págs. 207-209.

Sem comentários: