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segunda-feira, junho 30, 2008

DRAGÃO 7 NO «FAZER A FESTA»

O FAZER A FESTA (festival de teatro do Art'Imagem) deste ano, saldou-se pela apresentação de bons espectáculos, mostrando que o agrupamento do Porto não se furta a melhorar, de ano para ano, a qualidade do seu Festival.

Entre 25 de Abril e 4 de Maio, foram dezenas os grupos nacionais e estrangeiros que passaram pelos espaços dos jardins, da Capela, do Auditório da Biblioteca e da Tenda do Palácio de Cristal.

Na impossibilidade de analisarmos aqui o conjunto desses espectáculos, não podemos deixar de realçar aquela que, para nós, foi a maior surpresa.

Entre os espectáculos apresentados, contava-se o Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente.

Foram 3 as companhias que trouxeram esse espectáculo ao Festival: 2 portuguesas e uma brasileira: o «Dragão 7».

Era previsível que aguardássemos com expectativa as diferentes versões, mas jamais imaginaríamos que um grupo do Brasil pudesse surpreender-nos da forma como o fez o DRAGÃO 7.

Com efeito, não apenas vimos aquele que foi, para nós, o melhor espectáculo do Festival, como ficamos verdadeiramente encantado com a leitura (fiel e correcta) de Gil Vicente.

Sublinhando os aspectos mais cómicos do texto, o DRAGÃO 7 apresentou-nos um verdadeiro show de bom teatro. Os figurinos foram concebidos com grande rigor e a encenação proporcionou uma leitura e uma movimentação plástica que conferiram à representação uma frescura e uma alegria verdadeiramente contagiantes, possibilitando, inclusive, a participação do público, frequentemente chamado à cumplicidade pelos próprios actores e atrizes.

Desde os Diabos a Joane, do Judeu ao Enforcado, as diferentes personagens foram-se desdobrando pelos actores e actrizes do elenco sem que houvesse a menor perda de ritmo.

Assim, o clássico vicentino apareceu-nos numa moldura modernizada e plena de actualidade (o tema da morte e do pecado atravessa todos os tempos), convergindo na encenação alusões aos dias de hoje e utilizando de forma bastante criativa o espaço cénico (um auditório em anfiteatro), com os actores distribuindo-se pelos diferentes lugares da sala e mesmo no interior das filas onde o público (a princípio um pouco tímido face àquela aposta inesperada) acabou rendendo-se à alegria contagiante das personagens e às musicas de melodias conhecidas ou de sabor carnavalesco tipicamente brasileiro.

Foi uma verdadeira osmose entre Portugal e o Brasil: um Gil Vicente português com sotaque brasileiro e um grupo de brasileiras e brasileiros respeitando a herança cultural sem deixar de introduzir um toque de modernidade realmente encantador.

Muito poderia dizer-se sobre este espectáculo. Mas bastará dizer-se que, no final, os espectadores (nos quais se incluíam crianças e muitos jovens) de uma sala cheia estavam verdadeiramente rendidos ao magnetismo tropical dos nossos irmãos, trazendo até nós um grupo de excelentes actrizes e actores, senhores de uma expressão plástica e corporal notáveis e utilizando as vozes de tal forma que nehuma palavra se perdia, mesmo levando em linha de conta que o texto fora representado com a linguagem do século XVI.

Oxalá possamos ver mais vezes o DRAGÃO 7!
Fernando Peixoto

segunda-feira, junho 09, 2008

O QUE EU ESPERO DO TEATRO


Falando de Peter Brook, o actor/encenador/pedagogo João Mota, conta que:
«Peter Brook fazia muitas vezes uma pergunta que não vem em livro nenhum:
― Quando um grupo de pessoas se encontra numa estação de caminhos-de-ferro, há umas que partem e outras que chegam, mas há uma necessidade de lá ir ― vai-se lá buscar alguém ou vamos despedir-nos de alguém; quando vamos ao restaurante, há uma necessidade de comer; quando vamos ao teatro, qual é a necessidade? [sublinhado nosso]
[1].
Quando lia a recente edição portuguesa de O Espaço Vazio, de Peter Brook, veio-me à memória um conjunto de discussões que ultimamente tenho travado com alguns amigos sobre a essência do teatro. E, na maior parte das vezes, estamos em desacordo. Pela simples razão de que continuo a pensar que a arte teatral só existe e se justifica quando se estabelece um «diálogo» entre o actor e eu/espectador.
João Mota, citando Brook, pergunta precisamente aquilo que muitas vezes me tem assaltado: que vou eu fazer ao teatro? Qual é a minha necessidade?
Quando vou a alguns teatros, sento-me confortavelmente em cadeiras (algumas de veludo) e gasto algumas horas vendo actores em movimento, falando, falando, como se falassem consigo mesmos ou apenas estivessem pensando em voz alta, muitas vezes parecendo mesmo terem caído ali por estranho acaso, mas dando a nítida impressão de nada terem a ver uns com os outros e muito menos com o espaço que ocupam. Ou então proferindo frases espaçadas sem qualquer lógica, debitam palavras que nada têm a ver com a vivência do quotidiano do comum dos mortais. Muitas vezes adormeço!
Não me parece que o sucesso do teatro na Grécia antiga fosse consequência da afluência de um público especialmente preparado para ver teatro. Todos sabemos que o público do teatro desse tempo era cultural e socialmente bastante heterogéneo e, todavia, também ele participava nas votações para a classificação dos vencedores dos concursos de tragédia. Os prólogos das peças gregas e romanas mostram-nos bem como os autores procuravam sensibilizar a atenção do público para os seus trabalhos.
Hoje, parece que o drama, a comédia e a tragédia estão fora de moda e o que está a dar é precisamente construir textos e espectáculos que inventem uma realidade que ainda não é a nossa, ou seja, espectáculos que sendo incapazes, por si próprios, de motivarem a atenção e a reflexão do espectador, são vestidos com um tom de falsa declamação, completamente artificial e revestidos o mais possível com grandes efeitos cenográficos, luminotécnicos, ou sonoros.
«A imaginação é um músculo». Esta frase é também de Peter Brook, o mesmo que jamais se inibiu de montar os mais exigentes espectáculos em espaços vazios onde, à partida, a maioria dos encenadores diriam que era impossível montar um espectáculo. Mas, como Brook, também Augusto Boal provou, sem margem para dúvidas, a possibilidade de montar espectáculos no interior das aldeias índias, no meio confuso de um supermercado ou no espaço em movimento de um comboio.
Depois disto, é caso para questionar: quando vou ao teatro, exercito o músculo da imaginação? Se for «encandeado» pelo brilho dos efeitos especiais, é óbvio que a minha atenção fica presa a eles, desaparece o diálogo que o actor deveria travar comigo e fenece em mim qualquer apetite de reflexão.
Quando hoje em dia se vêem grandiosas montagens de Shakespeare, esquecemo-nos dos limitados recursos de meios e de espaço de que se servia Shakespeare e os seus contemporâneos para fazerem aparecer o «Espectro» dialogando com «Hamlet», tal como não havia mar na cena. Muito do que se dizia e representava, resultava do trabalho da imaginação que a obra e os seus fautores (do autor ao ensaiador, dos artífices aos actores) solicitavam ao público. E nem por isso o teatro isabelino deixava de atrair multidões. Não admira: as tragédias gregas nunca necessitaram de derramar sangue em palco para que os espectadores percebessem e se condoessem com as personagens que tinham «morrido» entre cenas.

UM ESPECTÁCULO A RECORDAR

Há pouco mais de duas semanas fui atraído por um espectáculo que para mim era uma verdadeira incógnita, ainda pelo facto de se tratar de um aproveitamento de textos de Brecht adaptados para teatro pelo Teatro Arado em co-produção com o Espaço T: As Histórias do Senhor Keuner.
A sala do Cine-Teatro Brasão estava a pouco menos de metade da sua lotação e, como mais tarde deduzi, grande parte dos espectadores eram constituídos por familiares e amigos das actrizes e actores que integravam o espectáculo.
Confesso desde já que não estava minimamente preparado para ver este espectáculo e nem me dei ao cuidado de ler a capa do programa (um modesto A4 dobrado) que definia «aquilo» como Teatro de Integração Social e Comunitária.
Por isso, logo nas primeiras aparições dos actores os meus olhos «viciados» notaram que havia ali algo de estranho. Eles não falavam como os «outros», não se movimentavam como os «outros» não olhavam como os «outros». Mas, curiosamente, parecia haver algo de indefinido que fazia com que se relacionassem entre eles de uma forma natural. O contacto físico era de grande espontaneidade; partiam de um movimento para o outro como quem vai da cozinha para a sala de jantar, impulsionados por uma palavra ou por um som musical.
Nas falas das actrizes e actores notava-se que havia algo de diferente em relação ao que estamos habituados a ouvir nos actores profissionais. Mais lentidão, por vezes, como se houvesse algumas dificuldades de articulação nas palavras, subidas e descidas de voz que pareciam menos ensaiadas que sons saindo do interior de cada um deles. Também os movimentos eram claramente diferentes daqueles que se ensinam no teatro profissional: os passos pareciam obedecer mais ao instinto do que a qualquer mecanização programada pela encenação, mas não deixavam de partilhar, de forma harmónica, os espaços que os separavam. Depois… bem, depois «escutei» silêncios inesperados e longos que me provocavam sucessivas interrogações.
Quem era esta gente? Como haviam chegado ali? O que os tinha motivado para este espectáculo?
E, o mais surpreendente: a coreografia desenvolvida parecia estar em perfeita harmonia com uma aparente falta de jeito para o ballet. Mas seria isso que se procurava? E, quando se ocultavam como uma massa informe, sob um enorme pano, faziam-no de forma tão convincente que eu me quedava numa ansiosa expectativa: que virá a seguir?
Lentamente fui-me apercebendo do que se passava, do que se pretendia transmitir, da exiguidade de recursos que amplifica a imaginação, e dei por mim surpreso perante aquilo que contemplava. E não adormeci !
No final tive a oportunidade de conviver durante alguns instantes com as actrizes e actores que participaram no espectáculo: e senti-me feliz ao compartilhar das sonoras e alegres gargalhadas de alguns deles, da forma desinibida como comunicavam, sem se importarem com os olhares de viés de alguns «vizinhos».
Eles tinham conseguido preencher um espaço praticamente vazio com uma arte reinventada, fruto da provocação que o grupo do Teatro Arado lhes fez.
E aconteceu TEATRO! Se não foi uma experiência nova, foi, pelo menos, original. E para mim foi altamente gratificante, recordando-me aquilo que Peter Brook escreveu:
«Para que alguma coisa relevante ocorra, é preciso criar um espaço vazio. O espaço vazio permite que surja um fenómeno novo, porque tudo que diz respeito a conteúdo, significado, expressão, linguagem e música só pode existir se a experiência for nova e original. Mas nenhuma experiência nova e original é possível se não houver um espaço puro, virgem, pronto para recebê-la».

É ISTO QUE EU ESPERO DO TEATRO!


NOTA ― O «Espaço T» surgiu no Porto, há quase dez anos, com o objectivo de redefinir a tradicional abordagem de ressocialização das minorias desfavorecidas e marginalizadas. Aqui convivem no mesmo espaço deficientes, toxicodependentes e pessoas "normais", recorrendo à arte como instrumento de terapia.


(Texto publicado em Que Cena, n.º 1-Primavera-2008)


FERNANDO PEIXOTO


[1] ― BROOK, Peter ― O Espaço Vazio. Lisboa: Orfeu Negro, 2008, p. 213.

NOTÍCIAS-JUNHO 2008



PUNHAL NA CARNE
de Júnior Sampaio
no Teatro do Campo Alegre
10-06-2008 a 29-06-2008


Co-produção do Seiva Trupe e ENTREtanto Teatro, a partir de "Como Um Punhal nas Carnes", de Maurício Kartun, com tradução de António Rebordão Navarro, adaptação, dramaturgia e encenação de Júnior Sampaio, interpretação de Clara Nogueira e José Fragoso, cenografia de Júnior Sampaio e Vítor Sotto-Mayor, desenho de luz de Wilma Moutinho e figurinos de Júlio Waterland.
Um texto, inédito em Portugal, que confronta a força e fraqueza da paixão arrebatadora. Um casal: as suas paixões extraconjugais. Delírios, desejos, esperanças, fantasias, sonhos, sofrimentos, feridas, angústias, desamparos, ressentimentos, desesperos, penúrias e enganos de que quem ama é vítima. A paisagem destruída de um casal depois da fúria devastadora da paixão (catástrofe natural que aflora a pele, inunda o corpo e reconstrói a alma).


O HOMEM SEM CARA
Teatro Art'Imagem
O Teatro Art’ Imagem irá apresentar “O homem sem cara” no auditório da Quinta da Caverneira, Águas Santas, Maia.
Este espectáculo estará em cena em Junho nos dias 12, 13 e 14 às 22h00 e no dia 15 às 16h00.
Destina-se a maiores de 12 anos e o preço do bilhete é de € 3,00 (preço único).

Inf e reservas pelo tlf 96 020 88 19
Esta peça (num texto original da nova dramaturgia portuguesa e estreada em Novembro 2006), foi inspirada na história verídica de um homem que sofre um grave acidente onde perde parte do rosto. Depois de várias operações aceita fazer um transplante. É este o drama em que vive.
Spinoza levantou a questão de saber se um homem muito mutilado ainda podia considerar-se um homem
ficha artística:
texto e encenação de Fernando Moreira * figurinos de Marita Setas Ferro * cenografia de Ricardo Preto * música de Carlos Adolfo * interpretação de Ângela B. Marques, Pedro Carvalho e Valdemar Santos.
sobre a peça (texto do encenador):
Quando vi na televisão uma reportagem sobre um homem que perdeu parte da cara e ao mesmo tempo li as notícias sobre o primeiro transplante mundial de rosto senti que havia matéria suficiente para escrever uma peça de teatro.
Encontrei ainda informações bizarras quanto ao chamado progresso da ciência, isto é, o homem a quem fora feito o primeiro transplante de
mão pediu aos médicos para a removerem (porque a achava feia e grande demais);
o homem chinês a quem foi transplantado o pénis pediu para o retirarem (a mulher não aceitou o novo orgão).
Compreendi que havia algo de lírico e trágico no meio disto tudo. Afinal, quem sofre mais: o acidentado ou as pessoas que lhe são próximas? Quem é, e quem foi a pessoa que doa o rosto? Como se aguenta psicologicamente o transplante?
Chegámos às profundezas do ser e como sabemos que arte é reflexão e inquietação avançámos, sem medo, para este desvelar da alma.


DUELO
de Bernardo Santareno
O Grupo Cénico da Música Nova, dirigido por Vicente Batalha, apresenta, no seu Teatrinho de Bolso, em Pernes, Santarém, "O Duelo", de Bernardo Santareno, em ante-estreia, no dia 24 de Maio, às 21h30, e, em estreia, no dia 25 de Maio, à mesma hora. Os espectáculos seguintes terão lugar, a 31 de Maio, 1, 21, 22 de Junho, sempre às 21h30. O Grupo conta com apoios da Câmara Municipal de Santarém, da Junta de Freguesia de Pernes e da Rádio Pernes. A peça "O Duelo", de Bernardo Santareno, foi publicada em 1961, e só subiu à cena dez anos depois (1971), pela Companhia do Teatro Nacional/Amélia Rey Colaço-Robles Monteiro, com Eunice Muñoz, João Perry, Henriqueta Maia e Cecília Guimarães nos principais papéis.
Um elenco de 29 intérpretes dá vida ao espectáculo, assente no belíssimo texto de Bernardo Santareno: Ana Luísa Oliveira (Manuela), Bruno Oliveira (Ângelo), Dária Batista Costa (1ª Velha), Cláudia Henriques (Maria Clara), Filipe Henriques (1º Campino), Joana da Paz (1ª Rapariga), Jorge Paulino (2º Campino), Leandro Pedro/Carlos Vieira (Chico), Maria José Mendonça (Mariana), Maria Manuela Teopisto (Rosária), Maria Teresa Teopisto (Salomé), Pedro Gaivoto (Zé Ruço), Stany Gonçalves (José); e, ainda, Salomé Vieira (Prólogo), Ana Catarina Guerra, Fernando Caetano, José António Leal Teopisto, Mónica Frazão, Paula Gonçalves (Coro), os pequenos, Catarina Henriques, Diogo Frazão, Gabriel Isidro, Leonor Henriques e Ricardo Cintrão, e Vicente Batalha (figuração), completam o grupo e enquadram a acção.Na ficha técnica: Rui Henriques (cenografia), Souzel Vieira, Lubélia Caetano, Maria Aurora Caetano, Maria Emília Cipriano, Maria José Mendonça (guarda-roupa e adereços), COOPERSOM (luminotécnica, Heitor Mendonça, e sonoplastia, Bruno Talhão), e Valter Jesus (apoio de cena). A direcção e encenação de "O Duelo" é de Vicente Batalha, com assistência de Telmo Jesus.
"O Duelo", que alguns estudiosos classificam como "uma tragédia", faz parte do 1º ciclo da obra de Santareno – o "realismo poético" – à semelhança de, "O Lugre", "O Crime da Aldeia Velha", "António, O Marinheiro" (O Édipo de Alfama) e "O Pecado de João Agonia".
A acção passa-se na lezíria do Tejo, no lado de lá da ponte, para as bandas de Almeirim, e tem como pano de fundo o Santíssimo Milagre de Santarém. "O Duelo" trava-se entre os trabalhadores dos campos e os senhores da lezíria. A síntese dessa luta, está expressa, logo no 1º acto, quando a mãe Rosária, num grito abafado, diz ao filho Ângelo, "Eles são os senhores, filho, e a gente os servos, eles podem tudo e a gente nada".
De "O Duelo", disse o crítico João Gaspar Simões (in "Diário de Notícias", em 1961):
"Pela sua linguagem, que é bela, sobretudo na boca de Rosária e Manuela (também de Ângelo e Mariana) e pela sobriedade dos seus lances dramáticos, "O Duelo", quanto a mim, é das peças de Bernardo Santareno que, uma vez em cena, consagrarão definitivamente um dramaturgo já hoje, sem favor, dos mais altos expoentes da dramaturgia nacional."
Do autor, Bernardo Santareno, diz Luís Francisco Rebelo, em "O Teatro Português": "Oscilando entre os pólos (de sinal contrário, mas de força equivalente) de uma fascinação do mal e de uma obsessão de angelismo, o seu teatro realiza a inesperada fusão de temas de raiz popular com as preocupações existenciais mais fundamente sentidas na carne e no espírito do homem seu e nosso contemporâneo."
Texto extraído de Tinta Fresca, Jornal de Arte, Cultura & Cidadania, de 23 de Maio de 2008


O DUELO em Pernes Texto de Rosalina Melro
O Duelo, numa ousada e bem sucedida apresentação do Grupo Cénico da Sociedade Musical União Pernense, fez a sua ante-estreia no passado sábado, 24 de Maio, com a sala esgotada, a que também compareceu o presidente da Câmara de Santarém.
O Duelo é a única peça de Bernardo Santareno que tem como localização a lezíria e a gente da planície ribatejana. O conflito foca aspectos etnográficos, sociais e económicos, nos anos sessenta. A tragédia, pressentida desde a primeira cena, revela-se humana. Caso de amor e paixão, de honra e justiça, de crença e medos. Tudo caminhos que entrelaçam as personagens. De mestre é a direcção, a encenação e a participação especial de Vicente Batalha. Um trabalho que considero das mais significativas homenagens a Bernardo Santareno.
O espectáculo começa com o clássico Coro, que assume função muito particular na antevisão da tragédia. Justifica os aplausos tal ousadia. Há outras funções que, no espectáculo, assumem excepcional relevância: a sonoplastia e a luminotecnia nas mãos e na sensibilidade de Heitor Mendonça e de Bruno Talhão. A cenografia de Rui Henriques e o apoio de cena, sempre muito bem na sua simplicidade. Também o guarda-roupa e adereços merecem louvor pelo cuidado na escolha de modelos e na fidelidade à época.
Maravilhoso o elenco. Aplausos a todos: as mulheres do povo, as raparigas, os campinos, as velhas e aquela estranha feiticeira, tão confiante no seu diabo! Linda, na sua ingénua frescura, a Cláudia Henriques. A Maria José Mendonça faz uma Mariana de actuação muito decidida, sempre bem no desempenho de mulher trave da casa e amiga da mãe de Ângelo, a Rosária é a personagem mais trágica. Personagem excepcionalmente construída por Maria Manuela Teopisto.
Recordo que O Duelo foi escrito em 1961 e representado pela Companhia do Teatro Nacional, em 1971. Então, o papel de Rosária coube a Eunice Muñoz. Papel de elevada tensão dramática, representa uma vida de medo, temor, superstições, mistério e dor. Ela é a mater dolorosa e passa ao filho essa herança trágica.
Também muito forte o trabalho de Ana Luísa Oliveira: a menina Manuela, a patroa, a mulher dona das terras, dos cavalos e dos toiros, mas escrava de coração apaixonada por um servo, Ângelo, o filho de Rosária, o que aprendera, na mágoa da mãe humilhada: "Eles são os senhores, filho, e a gente os servos, eles podem tudo e a gente nada". Surpreendente, o desempenho de Bruno Oliveira, no papel de Ângelo até pela evolução do seu trabalho sobre o palco, aqui representa o homem do povo, o servo que iguala a patroa ao enfrentar o destino trágico. Herói porque herdeiro da tragédia.
Todos ouviram merecidos e prolongados aplausos.
In "O Ribatejo", de 31 de Maio de 2008